Prolongamento
O pesadelo de Wilson Teixeira no Irão: "Deixaram-nos sem dinheiro"
2018-08-20 16:45:00
O jovem treinador português e o seu adjunto, Marco Almeida, foram ameaçados e obrigados a fugir para Portugal

Wilson Teixeira tinha cerca de 40 pessoas, flores e elementos da direção do Qashqai à sua espera no aeroporto de Shiraz quanto aterrou no Irão para iniciar a aventura com que sonhara desde que meteu na cabeça que queria ser treinador de futebol há mais de 15 anos. A proposta financeira era irrecusável e pensou estar perante uma bela oportunidade para provar as qualidades como líder de uma equipa, deixando para trás os rótulos e os preconceitos com que é olhado por cá. Ao Bancada, o treinador de 31 anos revelou os momentos complicados por que passou no Irão: “Nem tínhamos dinheiro para nada. Foram os jogadores que nos pagaram as viagens de regresso a Portugal. No último dia soube que um treinador português enviou uma mensagem a um diretor do clube a dizer mal de mim porque tinha participado num programa de televisão.”

Antes de irmos aos momentos complicados por que passaram Wilson Teixeira e Marco Almeida - antigo defesa-central do Sporting -, escondidos num hotel, sem dinheiro para o dia-a-dia e sob ameaças de que a polícia iria buscá-los por se encontrarem ilegais no Irão, vamos explicar o que os levou até lá. O sonho que comanda a vida destes dois homens é a paixão que sentem pelo futebol e a vontade que têm em ser treinadores, liderar equipas e terem resultados.

Wilson Teixeira era treinador da AD Carregado quando recebeu a proposta do Qashqai Shiraz, do Irão, para assumir os destinos técnicos da equipa, um dos principais clubes da cidade de Shiraz que joga num estádio, inaugurado por Wilson Teixeira e Marco Almeida, com capacidade para 50 mil pessoas.  

“De princípio ainda hesitei porque tinha no AD Carregado um projeto interessante, não financeiramente, mas desportivamente falando, o projeto que estava ali montado para o Carregado era interessante, apesar dos poucos recursos era um clube especial para mim. Foi com alguma dificuldade que decidi sair mas a proposta, em termos financeiros, era irrecusável, mas não acreditei nela logo de início. Quando estava cá em Portugal e me falaram na proposta não acreditei e aceitei ir lá para conhecer o clube e para perceber as coisas. Ele pagaram-me a viagem de ida. E fui sozinho de início, pensei: ‘se for para correr mal corre só a mim’”.

Como chegou a proposta

O nome de Wilson Teixeira chegou aos ouvidos do presidente do Qashqai, o senhor Ashkan Najafpour, através de Arash Ostovari, um jogador iraniano que passou por Portugal e que conhecia Wilson e a sua forma de trabalhar. Daí até à proposta foi uma questão de dias e a coisa acabou mesmo por acontecer, como nos explicou o próprio Wilson.

“Foi um jogador que estava lá na equipa, que curiosamente depois não ficou, e que já tinha passado por Portugal, no Lusitano de Vila Real de Santo António, que me conhecia e conhecia o meu trabalho no Moura. Esse jogador quando cá esteve em Portugal foi representado pelo Tadeu Martins e falou com o Tadeu Martins para saber se nós estávamos interessados e disponíveis, porque o presidente do clube, o Qashqai Shiraz, tinha o interesse de contratar e de ter treinadores portugueses no clube. Porque o treinador português é bem visto no Irão.”

Recorde-se o leitor de que falamos do Irão, cuja seleção nacional é liderada por Carlos Queirós.

“Portanto, foi esse jogador que me conhecia que fez a ponte com um agente iraniano que por sua vez tratou das negociações com o Qashqai. Era esse agente quem fazia a tradução de inglês para farsi, porque eu não falo farsi e o presidente do clube não fala inglês.”

Ora uma vez estabelecidos os primeiros contactos, Wilson Teixeira decidiu viajar até ao Irão para ver com os próprios olhos tudo aquilo que lhe tinha sido prometido. O treinador chegou ao Irão no dia 22 de junho e no aeroporto tinha uma pequena multidão a aguardá-lo. “Receberam-me com flores no aeroporto, tinha lá cerca de 40 pessoas à minha espera e mais alguns elementos da direção”, contou-nos. Os primeiros dias de Wilson Teixeira em Shiraz foram de sonho, a coisa parecia mesmo que estava a acontecer.

“Mas lá está, eles ‘pintaram aquilo de uma maneira muito embelezada. Levaram-me ao estádio novo, um estádio que foi inaugurado este ano, aliás, fomos nós que fizemos a inauguração do estádio no jogo de apresentação, com uma equipa da primeira liga, que vencemos por 1-0. A sede do Qashqai, que é um imóvel do presidente, é um edifício com quatro andares, portanto ele mostrou ser uma pessoa habituada ao investimento e foi tudo isto que me convenceu quando lá estive. Até à chegada do Marco íamos todos os dias almoçar e jantar a restaurantes bons e as coisas estavam todas a correr bem, pensei mesmo que tudo se estava a encaminhar.”

Wilson estreou o novo Estádio Pars, em Shiraz

Quando começou a correr mal

Uma das exigências de Wilson Teixeira e Marco Almeida, que foi prontamente aceite pelo presidente do Qashqai, estava relacionada com a forma de pagamento dos salários acordados. O contrato previa dez meses de ordenados e os dois treinadores portugueses acordaram receber 20 por cento do contrato no momento da assinatura.

“No dia em que eu assinei o contrato, dia 1 de julho, ficou estabelecido, no próprio contrato, que eu e o Marco Almeida teríamos de receber dois salários adiantados, ou seja, 20 por cento do contrato que tinha a duração de dez meses - com mais um ano de opção.”

E foi aqui que o pesadelo começou. As desculpas e os sucessivos adiamentos começaram a preocupar Wilson Teixeira e Marco Almeida, que se juntou ao primeiro no dia 6 de Julho. Logo no dia da assinatura do contrato, a primeira dose justificações, para que o dinheiro não fosse entregue, foi servida.

“O presidente explicou que, devido às restrições e aos embargos, estava a ter dificuldade em levantar o dinheiro, só podia levantar 400 dólares por dia e portanto ia levar alguns dias até conseguir reunir o dinheiro para nos pagar e pediu-me para esperar até à chegada do Marco para resolver a situação do dinheiro.”

Com a chegada de Marco Almeida, treinador adjunto da confiança de Wilson Teixeira desde 2015, o técnico português voltou a abordar o presidente do clube iraniano sobre a questão que tinha ficado acordada aquando da assinatura do contrato e as desculpas continuaram.

“Entretanto o Marco chegou dia 6 e eu perguntei-lhe outra vez pelo dinheiro. Eu tinha contas para pagar aqui em Portugal e era sempre uma segurança para nós, caso aquilo corresse mal. Ele respondeu-me que ainda não tinha conseguido reunir o dinheiro todo por vários motivos, falou na inscrição da equipa na liga e depois disse que tinham de tratar do nosso visto de trabalho para podermos abrir uma conta bancária para ser mais fácil fazer a transferência do dinheiro. Nós aceitámos esperar mais uma semana ou duas.”

A história dos adiamentos sucessivos é longa e nós deixamos que seja o próprio Wilson a contar.

“Nós começámos a ficar mais preocupados quando um dia que fomos à procura de sítio para o estágio e falámos de novo ao presidente sobre o dinheiro e ele voltou-nos a pedir mais uma semana. Aquela conversa já se estava a tornar recorrente, era sempre mais uma semana.

Passado uma semana fomos para estágio e voltámos a confrontá-lo com a nossa necessidade em receber os salários que tinham sido acordados, isto em 20 de julho, eu já lá estava há um vez. Dissemos-lhes que tínhamos despesas para pagar, eu e o Marco, e que não podíamos continuar nestas condições. Ficou ali decidido que ele nos pagaria assim que regressássemos do estágio, ou seja, ficou estabelecido o prazo de 3 de agosto para o pagamento dos 20 por cento, os tais dois salários.

Chegou o dia 3 de agosto, fomos treinar e o presidente não estava presente. Falámos com o diretor que estava sempre presente no treino e dissemos que tínhamos estabelecido aquele dia para o presidente nos pagar e precisávamos de resolver a situação porque tínhamos contas para pagar.

Quando acabou o treino, o diretor disse-nos que já falou com o presidente e que o presidente estaria no treino no dia seguinte para resolver a situação. Nós fomos para o hotel.”

O que aconteceu de seguida foi uma grande surpresa para para os dois treinadores portugueses e até para os jogadores da equipa que se recusaram a treinar. Wilson Teixeira chegou mesmo a ter de intervir para evitar o escalar de uma discussão que tirou alguns dos jogadores do sério.

“No dia seguinte, apresentámo-nos às 8h da manhã para o treino, o treino começava às 8h30/9h e é aí que somos surpreendidos com a presença de um elemento que não conhecíamos de lado nenhum, agora sabemos que é o Mehrdad. Entretanto o diretor disse-nos para esperar pelo presidente. Eram quase 10h da manhã quando o presidente apareceu e nos disse que ia haver uma alteração na equipa, isto a uma semana de começar a liga.

E então diz-nos que nós vamos passar a ser os adjuntos do Mehrdad. É claro que eu não reagi muito bem a esta ideia. Tínhamos ganho os seis jogos de preparação que realizámos, dois dias antes tínhamos ganho o jogo de apresentação por 1-0, a uma equipa da primeira liga e não estávamos a perceber o porquê daquela decisão dele.

A explicação que ele nos deu foi a seguinte, com o tradutor presente: porque a imprensa e os fãs eram muito pressionantes ele optou por contratar aquele treinador para dar a cara em público, ficando nós com todo o trabalho de campo, continuando nó a decidir toda a equipa e a tomar todas as decisões.

Depois de falar com o Marco, decidimos aceitar a situação, até porque queríamos receber os dois meses que estavam acordados e depois logo se veria se nos adaptávamos à nova situação ou não.

Quando regressamos à reunião, dissemos que aceitávamos, mas que teríamos de receber o que estava acordado. O presidente diz que não há problema e que já tem o dinheiro com ele e que nos dava no final do treino, ‘fiquem descansados, não problema nenhum, no final do treino dou-vos o dinheiro’, disse-nos ele. E nós lá vamos para o treino.

Acontece que, quando o presidente apresenta o novo treinador aos jogadores, os jogadores começam a discutir com o presidente, não percebi o que diziam, mas apercebi-me que a discussão estava quente e até tentei acalmar os meus jogadores, mas eles recusaram-se a treinar. Um dos que falava inglês depois começou a traduzir e disse que com aquele treinador, o Mehrdad, os jogadores não ficavam.”

Os dias de medo sob ameaças

Os acontecimentos de dia 4 de agosto revelaram ser muito importantes para o que viria a seguir. A revolta dos jogadores perante a situação espoletada pelo presidente com a introdução de um novo treinador criou uma situação sem retorno.

“Depois desse episódio no meio do relvado recolhemos ao balneário, já que não houve treino, e pedimos ao presidente que nos desse o dinheiro já que o tinha no carro, ao que ele nos respondeu que ia ter connosco ao hotel para conversarmos.

A verdade é que ele nunca apareceu no hotel. Nós fartámo-nos de lhe ligar, nunca nos atendeu. No dia a seguir, dia 5 de agosto, apresentámo-nos ao treino de manhã, pensando que as coisas já estariam mais calmas. Mas o que nos dizem quando lá chegámos foi que não podíamos dar o treino porque o novo treinador não contava connosco e nós voltámos para o hotel. Passámos o dia a tentar falar com presidente, que rejeitava as nossas chamadas, até que por intermédio do tal agente iraniano que fez a ponte entre nós e o clube, no início das negociações, lá nos foi dito que não íamos ser pagos porque o presidente não nos queria pagar. Disse-nos para nos irmos embora e que se não nos fôssemos embora que ele ia chamar a polícia porque ele não tinha tratado do nosso visto de trabalho e por isso estávamos ilegais e podíamos ser presos. Foi aí que começámos a ver a nossa vida a andar para trás.

Estar ilegal num país como o Irão não é uma coisa com que se deva brincar. As prisões iranianas não são sítios que se queiram conhecer. Ficámos receosos.”

A intervenção quase milagrosa dos jogadores

Wilson Teixeira e Marco Almeida estavam a atravessar uma situação complicada e com o passar dos dias, o dinheiro que tinham levado de Portugal, para os primeiros tempos, esgotara-se. Do hotel onde estavam hospedados conseguiam duas refeições: o pequeno-almoço e o almoço, mas o resto teria de sair do bolso dos portugueses, que por esta altura estava vazio.

Foi neste momento que surgiram os jogadores.

“Nunca nos faltaram com nada. Porque nós tínhamos direito ao pequeno-almoço e ao almoço, no hotel, mas o jantar eram eles que nos traziam. Nós ficámos sem dinheiro para comer e foram os jogadores que nos apoiaram desde o dia 5 de agosto até ao dia em que viemos embora, inclusivamente foram eles que nos passaram os contactos de duas ou três pessoas da federação de Shiraz.

Durante os momentos difíceis, os jogadores foram incansáveis. Estiveram sempre presentes e iam almoçar connosco ao hotel. Insistiam para que fôssemos com eles passear para desanuviar um bocado - mas nós até já tínhamos medo de sair do hotel.

A melhor coisa que me aconteceu no Irão foi o relacionamento que construí com aqueles jogadores e ainda hoje me mandam mensagens a contar como vão correndo os jogos e a dizer que têm saudades minhas, pedem-me para voltar.”

Wilson Teixeira em conversa com os seus jogadores

O fim do pesadelo

Foi com a ajuda do treinador português Miguel Teixeira, técnico adjunto no Zob Ahan, clube que disputa a primeira liga iraniana, que Wilson Teixeira chegou ao contacto com a embaixada portuguesa em Teerão. Foi mais ou menos a abertura de porta para a saída do Irão e para o fim do pesadelo.

Entretanto consegui falar com o Miguel Teixeira, que é um treinador português que está no Sepahan FC, como adjunto, e foi ele que me passou o contacto do embaixador português. Encarregado da Secção Consular o senhor João Carvalho, depois ajudou-nos a resolver a nossa situação. Chegou a fazer pressão ao clube para que resolvessem a nossa situação e sobretudo ajudou-nos a resolver a questão dos nossos vistos. Conseguiu dar-nos uns vistos de quatro dias para que pudéssemos resolver a nossa saída do Irão.

O problema era que nós já não tínhamos dinheiro para os bilhetes de avião. Tivemos então a ajuda dos jogadores que nos compraram uma passagem aérea de Shiraz para Teerão e depois de Teerão para Barcelona e depois tivemos nós de comprar a viagem de Barcelona até Lisboa.

Mas se não fossem os jogadores e o embaixador, neste momento ainda estaríamos no Irão e ilegais outra vez.”

O que pode ter estado por detrás da mudança de vontade do presidente do Qashqai Shiraz?

Wilson Teixeira esteve à frente do Qashqai cerca de mês e meio e realizou seis jogos de caráter preparatório. Um deles, o jogo de apresentação aos sócios, perante 30 mil adeptos, foi diante de uma equipa da primeira liga e resultado de 1-0 sorriu à rapaziada do treinador português.

Como tal, a decisão de interromper a ligação da equipa técnica portuguesa surgiu como uma grande surpresa. Mas, para Wilson Teixeira, existem duas questões que ainda hoje o fazem questionar as verdadeira razões por detrás da mudança de intenções do presidente do clube iraniano.

“Vi uma mensagem que foi enviada para o Instagram do clube, que me foi mostrada pelo diretor que gere as redes sociais do clube, de um treinador português a oferecer-se para a minha posição em troca de 200 por mês, com casa e comida.

Portanto, esse treinador português que já trabalhou em vários clubes estrangeiros, enviou uma mensagem ao diretor do Qashqai a falar mal de mim, a falar mal do Marco Almeida, a dizer várias coisas sobre nós. Falou sobre o meu passado e a minha exposição mediática. Esta mensagem foi enviada quando as coisas ainda corriam bem, mas a mensagem só me foi mostrada no dia em que me vi embora.

Soube também, depois, através deste diretor, o mesmo que me mostrou a mensagem e que sempre esteve do nosso lado, mesmo nos momentos mais complicados, que o Mehrdad é uma das pessoas mais ricas e influentes de Shiraz. Ou seja, deu-nos a entender que ele pudesse ter injetado dinheiro no clube de forma a comprar a posição de treinador principal.

Agora vamos expor o caso à FIFA.”

O fim do sonho… por agora

“O que nos custa mais é que, até ao dia 3 de agosto e tirando a parte do dinheiro, estávamos a viver um sonho, a trabalhar com uma equipa profissional, a mostrar resultados muito bons. Já éramos conhecidos nas ruas, éramos abordados pelas pessoas que nos diziam ‘I love you’, até me ri quando vi a entrevista do Jorge Jesus quando ele disse que lhe diziam ‘Jesus, I love you’. Senti que estava a fazer aquilo por que ando a trabalhar há 15 anos.”

Planos para o futuro

“Estou à espera de uma proposta palpável, mas para ser sincero, acho que já merecemos qualquer coisa ao nível do Campeonato de Portugal, pelo menos isso. O que posso dizer às pessoas é que nos deem uma oportunidade, se correr bem, tudo bem. Eu já disse que aos 35 anos quero estar na Primeira Liga, tenho 31, por isso tenho quatro anos. Só precisamos que as pessoas nos deem uma oportunidade para mostrar trabalho e resultados. Se nos derem condições, eu tenho a certeza que vamos apresentar resultados.

Mas há muitos rótulos e muitos preconceitos. Saber que há um treinador que envia uma mensagem para o outro lado do Mundo a dizer mal de ti, só porque estiveste num programa de televisão é frustrante e complicado.

Talvez seja mais difícil para nós, devido a esses rótulos e preconceitos, mas nós estamos disponíveis é para trabalhar, o futebol é a nossa paixão, temos caráter, temos ética, somos honestos connosco e com todas as pessoas com quem trabalhamos e só pedimos que nos deem uma oportunidade.

Quero só deixar uma palavra ao Tadeu Martins, o empresário que nos ajudou a ir para o Irão. Nada do que se passou é responsabilidade dele, pelo contrário, ele também ficou a ‘arder’ com a comissão e pouco mais podia fazer. Ele bem tentou contactar o presidente do Qashqai, mas nunca lhe atenderam o telefone. Ajudou-nos naquilo que podia ajudar, até se mostrou disponível para nos pagar as viagens de regresso a Portugal, o que na altura já não era necessário uma vez que já tínhamos arranjado uma solução com os jogadores, lá no Irão.”