Prolongamento
Foram-se os lavradores e caiu o Lusitano, o gigante alentejano da década de 50
2017-10-05 21:00:00
Histórico clube de Évora vai enfrentar o FC Porto na Taça, num embate que permite recordar os tempos áureos na Primeira

“Mataram o Lusitano!” Foi esta a sentença ouvida numa “célebre” assembleia geral onde se decidia o futuro do histórico emblema alentejano, no início da presente década. Longe do fulgor dos anos 50 e início de 60 do século passado, o Lusitano de Évora vive, agora, dias difíceis. O clube, que já esteve sem futebol sénior e que se viu obrigado a começar do zero, está atualmente nos distritais a tentar… “ressuscitar”. Contudo, o encontro com o FC Porto, para a terceira eliminatória da Taça de Portugal, vai permitir reacender as memórias dos tempos áureos em que o Lusitano chegou a bater o pé aos grandes do futebol português.   

O Campo Estrela, que não vai poder receber os dragões por falta de condições, foi uma verdadeira fortaleza para o Lusitano Ginásio Clube, de seu nome oficial. O Sporting esteve vários anos sem “matar o borrego” ali, o FC Porto perdeu cinco dos seis primeiros jogos que disputou no terreno do Lusitano, chegando mesmo a ser eliminado nas Antas para a Taça, em 1954/55, e o Benfica, apesar de só ter perdido uma única vez, foi goleado. Memórias que o tempo não apaga. Assim como também não esconde as 14 temporadas consecutivas que este gigante alentejano esteve na primeira divisão, entre 1951/52 e 1965/66.

“Conheço bem o clube… até acabarem com ele”, atira Feliciano Caeiro, sócio 44 do Lusitano e antigo membro do Conselho Fiscal e Assembleia Geral, assim como antigo colaborador e sub-diretor do jornal “O Lusitano”, entretanto já extinto. “Relembro com saudade, muita saudade a década de 50”, admite ao Bancada, aquele que pode muito bem ser considerado a maior enciclopédia viva do clube eborense. “O Benfica perdeu aqui 4-0, o Sporting nunca cá passava [entre 1952 e 1960, os leões apenas venceram um de dez jogos ali disputados], o FC Porto precisava sempre dos últimos minutos… Lembro-me do Campo Estrela ter cinco e seis mil pessoas lá dentro”, recorda Feliciano, que ainda é sócio do Lusitano, “com as quotas em dia”.

No entanto, como já tínhamos frisado, os tempos atuais são bem diferentes. “Quando entrei em 2012 não havia futebol sénior. Nesse ano reatámos novamente o futebol sénior. Não foi um trajeto fácil. O Lusitano tem dificuldades enormes. A questão dos terrenos e dos campos. As antigas direções venderam todo o património do clube”, confessa-nos Luís Valente, atual presidente da instituição. Por isso, o Campo Estrela também sofreu na pele e a falta de modernização, juntamente com as novas leis da Federação, acabaram por ditar que o Lusitano vá receber os dragões no Restelo, a 13 de outubro.

Os problemas com o Campo Estrela, que pertence ao clube desde a década de 30, estão também ligados à já famosa assembleia geral. “A morte do Lusitano começou há seis ou sete anos, nessa célebre assembleia geral feita na CCR, já o Lusitano não tinha sede. Fizeram uma mixórdia, transformaram o Campo Estrela e aquilo foi vendido a uma empresa fantasma, que não sei quem é. O Lusitano fez um campo numas quintas e agora está abandonado. Entretanto, o clube voltou ao Campo Estrela. Era um campo muito bonito e arranjadinho, mas devido à crise financeira está um pouco abandonado”, recorda Feliciano.

“As condições do Estádio são as que temos há muitos anos”, frisa Luís Valente, antes de criticar a política adoptada pela FPF: “O sentido da festa da Taça está a perder-se devido à legislação que saiu e que faz com que clubes mais pequenos não tenham hipótese de receber os grandes. Agora, os três grandes quando são visitantes têm jogos considerados de alto risco, o que faz com que haja uma quantidade de exigências que o Lusitano não tem condições para cumprir – e acredito que poucas equipas do interior e do Alentejo o tenham -, não podendo receber um jogo deste nível. São leis com as quais não concordamos de todo. Vai-se perdendo a festa da Taça, dos pequenos receberem os grandes”.

A razão para a escolha do Restelo, onde o atual técnico da equipa, o antigo lateral Duarte Machado, vai reencontrar uma casa que bem conhece, foi estritamente financeira. “O Restelo foi o que nos deu melhores condições em termos financeiros, porque temos de alugar um campo. Foi esse o motivo da escolha. Também pela proximidade de Évora. Setúbal era outra das soluções, mas os valores pedidos pelo Vitória FC são exagerados, de acordo com aquilo que pensaríamos que fosse possível”, garante ao Bancada o presidente do clube, revelando estar a “tentar com a ajuda da Câmara arranjar alguns autocarros para os adeptos poderem ir de forma gratuita a Lisboa”.

Com uma realidade amadora e a jogar longe de casa, quais serão a reais possibilidades da equipa alentejana? “Encaramos este jogo como um prémio para os nossos atletas. A nossa aposta tem sido na formação, o plantel tem cerca de 80 por cento de jogadores formados no clube. Estes jovens têm feito um trabalho extraordinário ao longo dos anos, a receber zero - nos primeiros anos não receberam rigorosamente nada e nos dois últimos anos, com a SAD, é que começaram a receber alguma coisa. Jogar com um grande é o sonho deles todos e é um prémio pelo esforço. Em termos desportivos estamos a falar da equipa que talvez jogue o melhor futebol em Portugal contra uma equipa do distrital, são coisas completamente diferentes. Vamos tentar fazer o nosso melhor, tentar dignificar a camisola e pode ser que tenhamos um dia de sorte e as coisas não sejam tão más como teoricamente poderão ser”, prevê Luís Valente.

Mesmo com meios à disposição para ajudar os adeptos a marcar presença no Restelo, o Lusitano não vai poder contar com o apoio de um sócio especial. O número 44. “Não vou ver”, adianta Feliciano Caeiro. “Já tenho 78 anos e já não estou para essas misturas. E tenho desgosto de ver o Lusitano como está. Sou daqueles lusitanistas de gema, que viveu o clube intensamente. No meu tempo juntávamo-nos e íamos ver o Lusitano à zona de Lisboa, a Almeirim, aos Leões de Santarém… Não acredito que o clube volte a esses tempos. Gostava de ver, mas como está não acredito”, lamenta, antes de fazer um prognóstico para o encontro: “Se o Lusitano perder por menos de cinco golos fico contente. Não há comparação possível entre uma equipa amadora e uma profissional como o FC Porto. Apesar de eu ter uma simpatia pelo Benfica [risos]”.

A falta de apoio camarário, segundo é sublinhado pelo presidente do clube, é uma das razões para o Lusitano ter chegado ao estado atual. Mas também a falta do apoio ligado à agricultura terá ajudado a este cenário, diz quem conhece a história do clube como a palma da mão. “O Lusitano naquela altura vivia muito à custa dos lavradores. Eles investiam no clube e foi à base disso que foi sobrevivendo. Até à célebre assembleia geral. Eu votei contra. Um sócio mais velho, já de 90 anos, disse o seguinte: ‘Estão a matar o meu Lusitano’. Viemos embora. Depois ganharam a votação e o Lusitano morreu”, explica Feliciano Caeiro.

A ideia pode parecer exagerada, pois o Lusitano continua de pé, mas no próprio site do clube é feita a descrição da crise vivida pelo emblema que nasceu sob o lema “fazer forte, fraca gente” e que nos seus primórdios já havia passado por situação idêntica. “Gestões polémicas, a que se juntou o desbarato do seu património, levaram ao descalabro da mais antiga e conhecida agremiação desportiva do Alentejo. Não se pense que a situação é virgem na história do clube, que entre 1934 e 1938 esteve à beira da extinção e não festejou as Bodas de Prata, apesar de ter sido galardoado com a Comenda da Ordem Militar de Cristo”, pode ler-se.

Internacionais e o “carrasco” FC Porto

Recuar no tempo até aos anos 50 leva-nos a recordar nomes como Vital, Falé ou José Pedro Biléu, jogadores que se destacaram no clube, tendo estado presentes em todas as temporadas em que o Lusitano esteve na primeira divisão. Mas ninguém melhor que Feliciano Caeiro, que ainda tem a tática na cabeça, para recordar as saudosas equipas do Lusitano. “Quando o Lusitano subiu à primeira divisão apareceu o Vital, guarda-redes [foi também treinador do clube em três períodos distintos, o último dos quais já neste século]. O Polido era o lateral direito, Falé a central e Paixão na esquerda. Depois, no meio, Athos, Garcia e Vicente. Na frente havia o Du Fialho, Flora, Cardona, Augusto Batalha e Zé Pedro Biléu, entre outros”, enumera, lembrando mais tarde um dos maiores nomes do clube já na década de 60: Mitó.

“Lembro-me de um célebre jogo do Benfica aqui em Évora, que estava empatado e já passavam três minutos da hora. O Ângelo, do Benfica, empurrou o Vital para dentro da baliza e foi golo. Nos jornais da época escreveram: ‘Lusitano, 0 Benfica, 0; Jacques Matias, 1’. Era o árbitro”, lembra Feliciano.

Muitos dos heróis desses tempos já faleceram, outros ainda continuam vivos, apesar da idade avançada. “O Falé ainda é vivo [tem 84 anos], falo com ele quase todos os dias. O Batalha já morreu há alguns anos, aqui em Évora. Houve ainda o Caraça, que morreu também já há alguns anos. Tal como o Vital. O Biléu ainda é vivo, mas está maluco, fala sozinho. Marcou muitos golos ao FC Porto e jogou na Seleção, foi internacional A e também internacional militar. Assim como o Vital, que quando saiu daqui foi para o Vitória de Setúbal tirar o lugar ao pai do Mourinho [Mourinho Félix]”, relembra o adepto e antigo dirigente do clube eborense.

Curiosamente, de todas estas glórias, Falé manteve ligação com o Lusitano até há bem pouco tempo. “O Falé esteve muitos anos ligado ao clube, mas nos últimos dois ou três afastou-se por motivos de saúde. Tinha a loja das velhas guardas, onde tinha algumas recordações e ajudava o clube. Mas, infelizmente, devido à saúde, não o temos visto por aqui”, realça Luís Valente.

De todos os nomes apontados por Feliciano Caeiro, destaque ainda para Garcia e Cardona, dois jovens hondurenhos que chegaram a Évora pela mão do brasileiro Otto Bumbel, técnico com vasto currículo, que já tinha passado pelo comando da seleção da Costa Rica e das Honduras antes de vir para Portugal. Foi ele que em 1956/57 alcançou a melhor classificação do clube na primeira, depois de terminar no 5.º posto. Mais tarde orientou o FC Porto e Académica, antes de regressar ao Lusitano em 1961/62. Seguiu, depois, a carreira em Espanha, até final da mesma – orientou clubes como Sevilha, Valência e Atlético Madrid.

Garcia e Cardona foram ambos internacionais pelo país da América Central e o segundo chegou mesmo a alinhar durante vários anos no Atlético Madrid. O Lusitano teve ainda jogadores espanhóis ou argentinos, com destaque para Vicente Di Paola. Houve também o paraguaio Melanio Olmedo, que chegou a representar o seu país na Copa América de 1953, que os paraguaios venceram. Em termos de treinadores, János Biri foi um dos mais míticos a ter passado pelo banco do Lusitano, fazendo-o em duas ocasiões diferentes.

Na história ficam ainda as duas temporadas em que o clube atingiu as meias-finais da Taça de Portugal. Em ambas as ocasiões foi o FC Porto a negar o sonho do Jamor aos alentejanos. Em 1952/53 o Lusitano eliminou o SC Braga nos oitavos-de-final e o Sporting, de Travassos, nos quartos-de-final, depois de um empate a dois golos em Lisboa e de uma falta de comparência dos leões na segunda mão, devido à presença na Taça Latina. Uma derrota por 4-1 no Porto e vitória por 1-0 em casa acabaram por ditar a eliminação.

A temporada de 1954/55 é a da vingança, com a equipa alentejana, então orientada por Cândido Tavares e já estabelecida no primeiro escalão, a eliminar o Vitória SC em Guimarães na primeira eliminatória. De seguida surpreendeu o FC Porto por 2-0, fora de casa, nos oitavos-de-final. Biléu marcou um dos golos. O outro foi de Caraça, jovem avançado formado no grande rival, o Juventude de Évora. Seria o Sporting a travar o Lusitano, em Évora, nos quartos-de-final, por 2-1. Caraça ainda empatou o encontro, mas Mokuna deu o triunfo aos leões ao bisar já perto do final.

Em 1958/59, já sob o comando do espanhol Lorenzo Ausina, o Lusitano voltou a chegar às meias-finais da Taça. E foi novamente o FC Porto a travar a equipa alentejana, desta vez sem apelo nem agravo. Na primeira mão os dragões venceram por 3-0 em Évora. Na segunda voltaram a vencer, mas por 7-1 – a eliminatória ficou em 10-1. Quase 60 anos depois, o sorteio da Taça ditou que estes velhos conhecidos se voltem a encontrar, embora o tempo tenha deixado marcas e, provavelmente, não permita aos alentejanos vingar a história.  

Na década de 60 o Lusitano começou a descer na classificação. Em 60/61 teve mesmo de disputar a "liguilha" para evitar a descida. Nessa época voltaram a ser eliminados pelo FC Porto na Taça, mas nos 32 avos-de-final - triunfo portista por 3-0 em casa e empate em Évora (2-2). No ano seguinte, novamente a "liguilha" a salvar o clube da descida. Até que em 1965/66, numa época em que Biri passou pela segunda vez pelo clube, o Lusitano desceu de divisão, nunca mais regressando ao convívio dos grandes do futebol português.

O histórico clube de Évora manteve-se ainda durante largos anos na segunda divisão e em 1982/83, pelas mãos de Vital, esteve perto do regresso ao primeiro escalão, mas falhou a subida na "liguilha". Em 1985/86 a equipa desceu da segunda. A partir daí o Lusitano nunca mais se recompôs. Andou a saltar entre a terceira divisão e a antiga segunda B, até que em 2010/11 regressou à Distrital. Em 2011/12 o clube não participou em qualquer prova e recomeçou do zero em 2012/13, subindo de divisão por dois anos consecutivos. Desde 2014/15 que está na principal divisão do futebol distrital eborense, ficando desde então sempre perto dos lugares cimeiros. Um sinal de retoma.

“Atualmente trata-se de um clube com 400 atletas, com as condições que temos, que não são as que gostaríamos de ter. Desde 2016 que constituímos uma SAD e apareceram pessoas com vontade de ajudar e meter o Lusitano noutros patamares. Vamos ver, não é fácil. Vai levar tempo, mas estamos a trabalhar nesse sentido”, assevera o presidente Luís Valente, que acabou por evitar aquilo que parecia ser a morte certa do Lusitano. “Vá lá que foram filhos de antigos dirigentes e lusitanistas que pegaram no clube. O atual presidente é filho do José Valente, um grande dirigente da história clube [foi vice-presidente]”, sentencia Feliciano Caeiro.

Rivalidade histórica

Além de todos os grandes feitos conquistados no campo, o Lusitano de Évora também está na história do futebol português por uma das maiores rivalidades existentes neste país à beira-mar plantado e que extrapolou para o lado social. O Lusitano sempre foi um clube bastante ligado à política e ao poder militar, o que era contraposto pela realidade mais humilde e associada à prole do Juventude de Évora. “Era o Benfica-Sporting cá de Évora. Ao Lusitano chamavam o clube dos ricos e ao Juventude o dos operários, por causa da realidade política da época”, recorda Feliciano Caeiro.

“Era uma grande rivalidade, os jogos acabavam quase sempre à porrada. Havia um sócio do Lusitano que não entrava no campo do Juventude. Um dia os amigos deram-lhe uns copos e levaram-no para o campo do Juventude. Quando ele percebeu onde estava, abalou a fugir, já nem assistiu ao jogo”, conta Feliciano, entre gargalhadas, sobre as histórias que lhe vêm à memória dos tempos áureos da rivalidade entre os dois clubes, frisando depois que, atualmente, essa realidade social se encontre um pouco invertida. “Agora é ao contrário. Inverteram-se as posições: o Lusitano está mal e o Juventude está protegido”, argumenta.

Por sua vez, Luís Valente assegura que a rivalidade ainda se mantém, mas de uma forma mais moderada e positiva. “A rivalidade continua e é de salutar. É uma rivalidade com as suas regras. Neste momento até estamos na mesma divisão. É nessas alturas, quando há o dérbi, que Évora mexe um pouco em termos de futebol. Em relação aos pobres e ricos, penso que somos os dois pobres. As dificuldades são enormes. Nenhuma equipa do concelho de Évora tem apoio da autarquia. Só com sócios e publicidade é complicado. Com campos que são suportados pelos clubes… Infelizmente, aqui são os clubes a fazer a manutenção dos campos. A realidade é esta, uma cidade como Évora com duas equipas no distrital”, rematou o presidente do Lusitano.