Prolongamento
Dos tempos difíceis no Benfica ao enorme susto no Irão
2018-06-24 19:35:00
Uma viagem pela carreira de Armando Sá, um moçambicano formado no Restelo que pisou alguns dos maiores palcos do planeta

Em 2004/05, a equipa principal do Villarreal CF deixava qualquer um deliciado. Manuel Pellegrini era o treinador e no plantel estavam nomes como Pepe Reina, Santi Cazorla, Juan Riquelme, Marcos Senna ou Diego Forlán, mas este texto não é sobre nenhum deles. Entre os defesas estava um moçambicano que também se sente português e que, pouco antes, jogava no Benfica, onde conquistou a Taça de Portugal. Mais tarde, viria a levantar a Taça do Rei pelo Espanyol, experimentar o futebol inglês e acabar a carreira no Irão, país da seleção que vai defrontar Portugal esta segunda-feira. Falamos de Armando Sá, lateral-direito que utilizou a águia ao peito nos primeiros anos deste século.

Mas é melhor recuarmos ainda mais. Armando Sá nasceu em Moçambique em 1975, cerca de um ano e meio depois do 25 de abril. Filho de pai português e mãe moçambicana, viajou para Portugal em criança para, segundo o próprio, "ter melhores estudos e tentar um futuro melhor". O futebol entrou na vida de Armando de forma natural, visto que tinha vários familiares ligados ao desporto. Começou no Atlético São Brás, na Amadora, e passou do futebol de cinco para o futebol de onze. Vestiu também a camisola do Damaiense por um curto espaço de tempo, mas foi quando chegou ao Belenenses que "tudo começou a ser mais sério". Contudo, assim que chegou a sénior, foi obrigado a parar de jogar futebol durante algum tempo. Em conversa com o Bancada, Armando Sá garante que isso lhe "atrasou a carreira". "Fiz as camadas jovens no Belém, fiz a transição de júnior para sénior e fui cumprir o serviço militar, o que me atrasou em termos de crescimento no futebol, atrasou-me a carreira. Lembro-me que o Belenenses estava interessado que eu continuasse. Fui emprestado ao Vilafranquense, onde fiz os meus primeiros passos como sénior", contou-nos.

Armando Sá (em cima, à esquerda) na formação do Belenenses (foto: Facebook Armando Sá)

Armando Sá esteve alguns anos em divisões inferiores e, no Vilafranquense, teve Rui Vitória, por exemplo, como colega de equipa. Jogou ainda um ano no GD Bragança e outro no SC Vila Real, onde deu nas vistas e, por isso, foi contratado por Carlos Brito para reforçar o Rio Ave apesar de ter "vários clubes interessados". Chegado a Vila do Conde, a concorrência era forte: nada mais nada menos que Nenad, lateral-direito jugoslavo que, para além do Rio Ave, também representou o Aves. Ainda assim, Armando Sá conseguiu ganhar o seu espaço e foi eleito o jogador revelação do campeonato, o que lhe permitiu ser titular nos dois anos seguintes. Foi contratado pelo SC Braga em 2001 e esteve apenas seis meses nos guerreiros. No mercado de inverno reforçou o Benfica e realizou um dos seus "grandes sonhos". "Fiz três anos em Vila do Conde num clube inesquecível que me marcou bastante. Tive vários clubes grandes interessados nos meus serviços, mas as coisas não se realizaram e acabei por assinar pelo Braga. Tive só seis meses no Braga e, antes de ir para o Benfica, tive convites do Sporting e do próprio Benfica, mas não se realizou. Mas, em janeiro, fui eu, o Tiago e o Ricardo Rocha. Realizei um dos meus grandes sonhos, que era jogar num grande", referiu o moçambicano ao Bancada.

Num embate entre o Benfica e o Inter Milão (foto: Daniel Dal Zennaro/EPA)

Assim que colocou os pés na Luz, Armando Sá ficou a perceber de imediato as diferenças para com os emblemas que tinha representado antes. "Foram bastantes em termos de grandeza do clube. A grandeza do Benfica é enorme. A pressão, a exigência... Tem outra dimensão. É um clube que tem um historial vencedor e isso pesa num jogador que assina pelo Benfica", explicou, ainda que nem tudo tenha corrido às mil maravilhas. O oásis no meio do deserto foi José Antonio Camacho, que ajudou a colocar a equipa nos eixos. "Quando cheguei lá, as coisas não eram estáveis no Benfica. Troca de jogadores, de treinadores... Estava tudo um bocado confuso na direção e no clube. O clube não estava num bom momento e penso que, a partir do ano seguinte à minha chegada, quando o Camacho assume [a equipa] as coisas começam a encaixar e o Benfica apanha um rumo de crescimento." Armando Sá esteve duas temporadas e meia no Benfica, tendo realizado 56 partidas e marcado um golo contra a Académica em março de 2003. Conquistou apenas um troféu ao bater o FC Porto na final da Taça de Portugal em 2004, mas esse "foi um dos momentos mais altos da carreira". "Tantos jogadores passaram pelo Benfica que foram grandes jogadores e não ganharam nada. É preciso ter sorte. O Preud'homme foi um dos melhores guarda-redes da história do Benfica e nunca foi campeão pelo Benfica."

Depois dessa conquista, Armando Sá saiu do Benfica e rumou ao Villarreal CF com a ajuda de José Antonio Camacho, que o sugeriu ao clube espanhol. E foi para o Villarreal CF com uma tarefa complicada: substituir o internacional brasileiro Juliano Belletti, que se havia mudado para o FC Barcelona. Contudo, com tantos craques na equipa, a adaptação a uma liga e a um país diferente foi tudo menos complicada. "Acabou por ser fácil, porque no meio destes belíssimos jogadores as coisas tornam-se muito mais fáceis. Fui bem recebido e fiz uma época boa, as coisas correram bem", admitiu. Mesmo assim, saiu para o Espanyol em 2005, realizando 27 jogos (um golo) nessa temporada. Em abril, esteve no banco na conquista da Taça do Rei contra o Real Saragoça, mas não coloca o troféu à frente da Taça de Portugal. "A Taça de Portugal teve mais impacto para mim. Se calhar, por ser o primeiro título e a seguir porque Portugal é a minha casa. Tenho tudo a agradecer a Portugal, onde não nasci, mas onde fui criado."

O lateral-direito a disputar um lance com Ronaldo, internacional brasileiro do Real Madrid (foto: Ballesteros/EPA)

Em 2006/07, Armando Sá experimentou o terceiro país da carreira para jogar futebol. Depois de Portugal e Espanha, o defesa mudou-se para Inglaterra e representou o Leeds United na Segunda Liga do país de Sua Majestade e ficou deliciado. "Quando cheguei a Inglaterra, perguntei-me porque é que não tinha vindo há mais tempo. A atmosfera, a paixão que há... Gostei muito de ter jogador no Leeds, um clube histórico do futebol inglês. Foi uma experiência bonita e tive a sorte de jogar em três dos campeonatos mais fortes da Europa: o português, o espanhol e o inglês."

Mas o destino mais curioso e improvável da carreira de Armando Sá foi mesmo o Irão. Depois do Leeds United, o lateral teve a hipótese de regressar a Espanha para representar o Málaga CF, mas, admite-nos, pensou "em aproveitar os últimos anos da carreira para suportar a família". Apesar das diferenças dentro e fora de campo, Armando Sá garante que não sente qualquer arrependimento em ter tomado a decisão que tomou, até pelo facto de ter sido um dos primeiros portugueses (apesar de nascer em Moçambique ter jogado pelos africanos, também se considera português) a experimentar o futebol iraniano. E mesmo essas diferenças entre o futebol europeu e o do Irão não foram muito complicadas de ultrapassar. "É um choque enorme para quem está habituado a jogar em grandes estádios como o Bernabéu, a Luz. Encontras uma realidade completamente diferente. Mas eu tive uma coisa sempre muito boa: adapto-me facilmente aos sítios onde estou. Tenho essa sorte de poder entender e aceitar o sítio onde estou a trabalhar."

E foi mesmo no Irão, onde jogou pelo Foolad FC e pelo Sepahan, que Armando Sá viveu um dos momentos mais insólitos e assustadores da sua vida. Foi logo nos primeiros dias e só podia ter acontecido a um estrangeiro que, na altura, tinha pouco conhecimento da realidade do país. "Lembro-me de estar um dia sentado em casa, na sala, e estava ver o canal brasileiro 'Record', que só dá tragédias. Deu o noticiário e, de repente, o gajo do noticiário diz que os Estados Unidos vão atacar o Irão. Saltei da cadeira, telefonei para todo o mundo a dizer que tinha de ir embora porque aquilo estava grave [risos]. Passei muito mal a noite. Chego ao treino e vejo toda a gente normalíssima. Digo-lhes que os Estados Unidos vão atacar o Irão e eles só respondiam com «no problem». Eu em pânico e eles tranquilos. Depois fui-me habituando a perceber como aquilo funciona", contou-nos, bem disposto.

Hoje, Armando Sá trabalha no Kleinburg Nobleton, clube do Canadá (foto: Facebook Armando Sá)

Terminou a carreira no Irão e, desde então, Armando Sá tem continuado ligado ao futebol e sempre em ação. Tirou o curso de treinador e, garante-nos, tem como principal objetivo "conseguir um dia atingir o mesmo nível de treinador que atingi como jogador". "Os jogadores de futebol têm duas vidas: quando jogam e quando acabam a carreira, em que têm de entrar noutras realidades a que não estão habituados e começam do zero. Às vezes não é fácil começar do zero aos 30 e tal anos. Fui-me habituando pouco a pouco", revelou Armando Sá, que hoje trabalha no clube canadiano Kleinburg Nobleton.

No final da conversa, decidimos pedir-lhe uma previsão ao jogo de Portugal contra o Irão que vai fechar a fase de grupos do Mundial para os lusitanos. Vinda de alguém com fortes ligações a Portugal e com experiência futebolística no país asiático, a opinião de Armando Sá conta. E é uma opinião que deve deixar os portugueses satisfeitos. "Não vai ser um jogo fácil. Portugal tem grandes possibilidades. Às vezes ouço as pessoas a comentarem e a dizerem que Portugal não está a jogar ao melhor nível. Estes dois jogos que Portugal fez foram de grande sacrifício. Contra Espanha, uma das melhores seleções do mundo... Portugal bateu-se muito bem e os jogadores estão de parabéns. Contra Marrocos... É uma equipa aguerrida que não deixa jogar, que tirou um bocado do nosso estilo de jogo. Nós adaptámo-nos bem, recorremos ao físico para poder aguentar a pressãode Marrocos. Claro que pode fazer mais, mas Portugal está de parabéns. Contra Irão vai ser mais uma guerra, um jogo quase idêntico ao de Marrocos, onde o Irão vai defender muito bem. É uma equipa muito bem organizada pelo Carlos Queiroz que vai usar o contra-ataque. As duas equipas têm de pontuar. Espero que Portugal torne o jogo fácil. Estou confiante."

Ainda bem, Armando. Esperamos todos que tenhas razão.