Passou um dia desde a primeira metade da eliminatória mais importante da história do Caldas Sport Clube, fundado em 1916. A equipa amadora do terceiro escalão do futebol português chegou de forma brilhante às meias-finais da Taça de Portugal e, esta quarta-feira, foi a casa do primodivisionário CD Aves perder por 1-0, um resultado que deixa tudo em aberto para a segunda mão (18 de abril). Contudo, o resultado final e o que isso pode significar para a eliminatória não foi o mais importante para a maioria das pessoas presentes no recinto. Isto porque, para os caldenses, todo o ambiente vivido nesta viagem e a festa que criaram no norte do país criou um valor próprio muito elevado.
É impossível dizer o número exato de adeptos do Caldas SC que esteve no estádio. Falou-se em 1500, mas já ouvimos também 2000. A única certeza é que foram muitos. Na Expoeste, espaço dedicado a exposições na zona, estavam, de acordo com a autarquia local, cerca de 3000 pessoas. No total, entre Vila das Aves e Expoeste, o número de adeptos do Caldas SC rondou os 5000, ou seja, cerca de 10% da população do concelho do distrito de Leiria – de acordo com os Censos de 2011, as Caldas da Rainha têm 51645 habitantes.
A romaria dos adeptos Caldas SC pode ser comparada, em escala diferente, ao que os islandeses fizeram no Campeonato da Europa de 2016. Nessa prova, quase 30 mil habitantes da Islândia, um país com pouco mais de 300 mil habitantes, estiveram em França para assistir aos jogos da seleção nacional (e 99.8% dos restantes viram na televisão).
O momento em que Luís Paulo defendeu o pontapé de penálti de Paulo Machado na Expoeste, nas Caldas da Rainha (vídeo: Facebook de Jorge Varela, Presidente na Junta da União de Freguesias das Caldas da Rainha - Santo Onofre e Serra do Bouro)
É possível termos o Caldas SC no Estádio do Jamor? Os milhares de adeptos que viajaram até à Vila das Aves e todos aqueles que ficaram nas Caldas da Rainha acreditam que sim.
Jaime Feijão, 51 anos, agente de seguros
Jaime não é um adepto normal. Isto porque é, na verdade, o ‘speaker’ do Campo da Mata, estando habituado a acompanhar de perto os jogos em casa da equipa caldense. Assim sendo, poder ver o jogo na bancada com tantos adeptos foi “excecional”. “Ontem, para mim, foi excecional poder ir para a bancada. Normalmente tenho de estar sempre quieto e calado. Não me posso esticar muito”, explicou ao Bancada.
O agente de seguros (que já foi jornalista) realçou o impacto e a importância que a chegada do Caldas SC às meias-finais da Taça de Portugal teve na cidade, para além do clube. “Não sendo da direção, acabo por andar sempre muito perto porque estou no clube sempre que posso e vejo a emoção com que as coisas têm acontecido. Entre a direção e adeptos as coisas estão ao rubro. Embora o clube beneficie muito com isto, a cidade também beneficia. Hoje, fala-se nas Caldas no país todo por causa de um jogo de futebol.”
Por ter condições para isso, Jaime Feijão não teve de colocar em causa o emprego para poder ir até à primeira mão das meias-finais da Taça de Portugal. Pelo contrário: até foi ao jogo com o próprio patrão, também ele adepto de futebol e do Caldas SC. “Acabei por pôr um dia de férias no meu trabalho, mas, felizmente, tenho uma condição profissional que me permite gerir a minha vida profissional. O meu patrão até gosta tanto disto como eu e acabámos por ir juntos [ao jogo] e levámos uns amigos. Acaba por se juntar o útil ao agradável. Há muita gente que meteu dias de férias, que trabalhou de manhã e foi à tarde, que teve de negociar situações para poder ir.”
Um dos momentos que mais ficou na memória de Jaime foi na viagem de volta. “Quando estávamos a voltar, estava com um amigo que tem uma empresa onde trabalha um dos jogadores que lhe enviou uma mensagem a dizer: ‘só vamos chegar às Caldas às quatro da manhã, mas fique descansado que eu vou trabalhar amanhã de manhã’. Eu disse para ele responder a dizer que ele pode ficar a dormir a manhã na cama. Ele ficou”, recordou.
A chegada do autocarro do Caldas SC ao estádio do CD Aves (vídeo: Facebook de Jaime Feijão)
Mas nem tudo foram rosas na deslocação do Caldas SC à Vila das Aves. Fora do estádio, houve alguns desacatados entre os adeptos caldenses e a polícia. Tudo, conta Jaime, porque alguns “miúdos da claque largaram um pote de fumo ou uma tocha” num estabelecimento comercial. Alguns aficionados do Caldas SC ficaram com mazelas.
“Houve uma mini-carga policial. Até houve um amigo meu que ficou todo marcado e há uma fotografia a circular no Facebook de um adepto que ficou marcado na perna. Eu não vi, mas disseram-me que os miúdos da claque largaram um pote de fumo ou uma tocha num café, a senhora do café pediu para eles saírem e quando já nada fazia prever a polícia chegou, começou a empurrar e como as pessoas não obedeceram logo às ordens largaram lá umas cacetadas. Foi tudo um bocadinho sem lógica e sem jeito”, revelou. A claque Sector 1916, num comunicado emitido na página de Facebook, negou ter aberto "fumos em qualquer estabelecimento, dentro ou fora de Vila de Aves" ou fazer "qualquer distúrbio, tendo habitualmente as forças policiais presentes nos jogos do Caldas, elogiado" o comportamento da mesma.
Para quem via o jogo na televisão, os adeptos do Caldas SC foram muito mais ruidosos que os do CD Aves, que jogava em casa. Confrontado com esse tema, Jaime Feijão assegurou que não foi só na televisão: no estádio, o único barulho que se ouvia vinha da bancada dedicada ao Caldas SC. O apoio dado pela massa adepta e a forma como tudo aconteceu vai ficar para sempre na retina do ‘speaker’ do clube.
“Em Inglaterra, por exemplo, onde tive a oportunidade de ver um jogo do Chelsea, estavam lá uns tipos a gritar no aquecimento como se fossem golos. Ontem, com o Caldas, cada lance ganho era motivo de comemoração. A defesa do Luís Paulo foi o êxtase, mas cada bola dividida era uma vitória para nós. Valia tudo. (…) Viver o jogo da forma como vivi, com ninguém a arredar pé por causa da chuva, é algo que nunca vou esquecer”, concluiu.
À esquerda: Jaime Feijão (esquerda) com Jorge Reis (direita), presidente do Caldas SC. À direita: Jaime Feijão (direita) com amigos já dentro do estádio do CD Aves (fotos: Jaime Feijão)
Jorge Miguel Reis, 41 anos, empregado de balcão
“Estou um bocadinho rouco. Mas ir lá para cima sem ser para gritar não vale a pena. Desde apoiar até chamar nomes aos árbitros, que também faz parte”, começou por dizer ao Bancada Jorge Miguel Reis, adepto do Caldas SC.
Por questões profissionais, Jorge Miguel Reis não conseguiu ir a todos os jogos do Caldas SC nesta Taça de Portugal, mas marcou presença na partida com o Farense que garantiu, com muito dramatismo, a presença da equipa nas meias-finais e contou-nos qual foi o sentimento e a reação que teve. “Cheguei aqui ao meu café e disse: ‘eu vou à Vila das Aves. Não vou trabalhar nesse dia. Temos de ter uma grande festa das Caldas’. Como somos um clube amador, a alegria foi ainda maior. Quem sente o clube da terra ainda dá mais valor do que dizer que é do Benfica ou do Sporting. Eu sou do Benfica, mas se o Caldas fosse à final da Taça com o Benfica tenho a certeza que ia torcer pelo Caldas. Neste momento, toda a gente das Caldas, mesmo quem não acompanha muito o futebol, está a viver isto de uma forma especial e com muita alegria. É uma situação muito bonita.”
Ao contrário de Jaime Feijão, Jorge foi à Vila das Aves num dos muitos autocarros que a Câmara Municipal das Caldas da Rainha disponibilizou e ao Bancada, falou muito mais sobre toda a atmosfera criada em volta da deslocação do que do jogo em si. “O ambiente foi fantástico. Fui com um amigo e não conhecia o resto das pessoas que estavam no autocarro. Foi uma alegria imensa, tudo bem disposto, não faltou comida nem bebida. As pessoas levaram tudo e mais alguma coisa. Parecia que toda a gente se conhecia. Senhoras, senhores, muitas crianças. Foi um convívio muito, muito bom.”
Alguns dos muitos autocarros com adeptos do Caldas SC que foram até à Vila das Aves (foto: Facebook de Jorge Miguel Reis)
Chegado à Vila das Aves, Jorge Miguel Reis encontrou adeptos do clube adversário e meteu conversa com eles. “Tudo muito tranquilo”, assegurou. Mas o que mais ficou na memória do adepto foi mesmo o que ouviu da boca de alguns avenses. “Ouvimos pessoas do Aves dizer que nunca viram uma festa daquelas naquela terra, nem quando lá foi o Benfica ou o Sporting”, revelou.
Dentro do estádio, para além das fortes emoções motivadas pelo jogo dentro das quatro linhas – que teve muita polémica à mistura -, o melhor em jogador em campo, para Jorge Miguel Reis, foi mesmo o… 12º. Os milhares de caldenses presentes na freguesia do concelho de Santo Tirso não pouparam as gargantas durante um segundo que fosse, e isso deve-se, em grande parte, à claque que puxou sempre os restantes adeptos nesse sentido.
“Temos uma claque de miúdos legalizada, malta com 20 e poucos anos, e eles são incansáveis a puxar pelo Caldas e a tentar cativar as pessoas a gritarem o máximo que pudessem. Sei dar valor ao trabalho que eles fazem. Estarmos ali na bancada com toda a gente a puxar pelo Caldas é um motivo de grande orgulho. Fiquei muito contente de ver as pessoas nas estradas a tirarem fotografias aos autocarros que levavam os adeptos. Temos um orgulho imenso no Caldas e nestes jovens todos”, frisou.
A entrada dos adeptos do Caldas SC no estádio do CD Aves (vídeo: Facebook de Jorge Miguel Reis)
Paulo Espírito Santo, 34 anos, advogado
Outro adepto que esteve presente na Vila das Aves foi Paulo Espírito Santo. Tal como a larga maioria (ou mesmo a totalidade) dos adeptos do Caldas SC, ficou satisfeito com o resultado conseguido porque, com uma desvantagem de apenas um golo, tudo é possível no Campo da Mata, a casa do Caldas SC.
“Ontem foi como nos outros jogos, a acreditar que íamos conseguir um bom resultado mesmo que não ganhássemos porque na Mata, no nosso campo, temos sempre melhores resultados do que fora. Temos tido a sorte das eliminatórias terem calhado cá, o que nos tem ajudado por causa do ambiente que se tem criado na cidade e no clube. A própria equipa tem notado isso, porque às vezes é o público que puxa quando faltam pernas”, garantiu Paulo Espírito Santo.
O que também não deixou Paulo indiferente foi a partida do autocarro da equipa para a Vila das Aves, com uma grande fatia da população das Caldas da Rainha na rua, a apoiar os jogadores (“parecia o EURO 2004 – obviamente não com a mesma proporção”). Assim que se soube a data do jogo, todos se prepararam até um local que não trouxe razões de queixa para Paulo, mesmo com algumas demonstrações de apoio mais evidentes. “Foi perceber quando era e riscar tudo o que tinha na agenda nesse dia. Como sou eu que trato da minha agenda, tenho essa facilidade. (…) Cheguei [a Aves] antes dos autocarros e posso dizer que não tenho nenhuma razão de queixa. A disponibilidade de todos foi muito interessante. O nosso carro ia com cachecóis de fora, buzinámos e não nos sentimos mal recebidos, de todo.”
Paulo Espírito Santo (à direita, ao centro) foi um dos milhares de adeptos caldenses que se deslocou ao norte do país (foto: Paulo Espírito Santo)
Apesar de o terem conseguido, os adeptos do Caldas SC não se preocupavam em ‘calar’ os simpatizantes do CD Aves. O importante era mesmo fazer a equipa sentir que tinha uma bancada cheia a apoiá-la. Mesmo que todos os adeptos do Caldas SC estivessem calados, explica Paulo, “já seria muito interessante”. Para alguém que frequente com regularidade o Campo da Mata, o que se viu em Aves foi tudo menos surpreendente. O Caldas SC consegue reunir todos aqueles com ligações à região, mesmo que o clube que apoiam normalmente seja, na larga maioria dos casos, um dos três grandes.
“Aquilo que aconteceu nas Aves foi aquilo que tem acontecido na nossa Mata encantada: um apoio constante de ruído, mas, acima de tudo, de mensagem. Acreditamos neles [jogadores], reconhecemos toda a capacidade deles e, acima de tudo, acreditamos que é possível chegar ao Jamor. (…) A ligação que temos, neste momento, entre adeptos e equipa é única e muito especial. Eu sou, como qualquer português, adepto de um dos três e nunca vibrei tanto num jogo desse clube como tenho vibrado nos jogos do Caldas nesta época”, contou.
E a segunda mão? Tal como no jogo desta quarta-feira, no que depender de Paulo, nada vai incomodar aquele que se pode tornar no jogo mais memorável da vida de toda uma cidade. Os jogadores do CD Aves que se preparem para um ambiente de forte apoio à equipa da casa.
“O dia já está riscado na agenda. [Risos] O que se pode esperar dos adeptos é aquilo que aconteceu em Aves mas vezes seis ou sete. É aquele barulho todo, aquela energia, aquela garra e querer vezes seis. É toda uma dinâmica que existe na cidade que já nos vai levando a sentir isto há meses. Sabemos que temos de passar este jogo e o sentimento que temos na rua é de que vamos conseguir lá chegar”, disse-nos Paulo, que sente o mesmo que toda a cidade.