Prolongamento
Caldas SC, o campeão da estabilidade que quer fazer Taça no “mini Jamor”
2017-11-27 19:00:00
Sucesso do centenário clube das Caldas da Rainha assenta na formação, que fornece mais de 50 por cento do atual plantel

Restam quatro equipas do terceiro escalão nos oitavos-de-final da Taça de Portugal. Uma dessas surpresas dá pelo nome de Caldas Sport Clube. Um triunfo frente ao FC Arouca, da Segunda Liga, na última eliminatória, colocou a equipa de José Vala numa fase da prova onde já não chegava desde os dourados anos 50, quando andou quatro épocas pela primeira divisão. O segredo do sucesso está na cerâmica… perdão, na prata da casa. O plantel é constituído por vários jogadores oriundos da formação e outros tantos vindos de clubes vizinhos.  

Símbolo da região Oeste, o centenário emblema vive novamente dias de fama, sobretudo pela atenção adquirida na edição deste ano da Taça de Portugal. No entanto, nos últimos anos o Caldas SC não se tem destacado pelos troféus, mas, sim, pela regularidade. Títulos? Só o de campeão da estabilidade. É dos emblemas que se mantém há mais tempo nas divisões nacionais sem alcançar os escalões profissionais, mas também sem cair às divisões distritais. Desde 1970 que por ali anda, entre a antiga Segunda B e a extinta Terceira Divisão, estabilizando-se, agora, no CNS.

De todos os craques desta autêntica “seleção do Oeste” destaca-se um nome: João Rodrigues. Um avançado tímido, que na juventude foi rejeitado pelos grandes, mas que agora perde toda a vergonha perante as balizas adversárias. Leva já oito golos na Série D do Campeonato de Portugal e mais dois na Taça, um deles frente ao Arouca. Também o “fator casa” tem sido determinante para o emblema que vem de uma cidade onde a arte de Rafael Bordalo Pinheiro é mais famosa que o futebol. No entanto, esta época, isso está a mudar. E a Académica pode ter uma certeza: antes do Jamor, a festa da Taça vai passar pelo “mini Jamor” da Mata das Caldas da Rainha.

Um clube estável, mas com dificuldades

O Caldas SC não tem sido um clube de grande aparato. Muitos adeptos podem não ter dado pelos “pelicanos” nos últimos anos, mas a verdade é que eles andam sempre pelas competições nacionais, cumprindo religiosamente o objetivo de por ali permanecerem. Desde 1970 que isso acontece. Pelo meio estiveram quase a subir à Segunda Liga, mas tal nunca se confirmou. Também houve lugar para o inverso, quando a crise financeira bateu à porta do clube. Para fugir à queda no abismo, que afetou tantos clubes da mesma dimensão ao longo dos últimos anos, o Caldas teve mesmo de enfrentar um “ano zero”.

“Acima de tudo, o segredo passa por ter os pés bem assentes na terra”, começa por contar-nos Jorge Reis, presidente do clube. “O Caldas passou por momentos difíceis. Depois da passagem pela Primeira Divisão fizemos uma travessia do deserto, fomos aos distritais e desde 1970 conseguimos estabilizar em termos desportivos. Mas em 2006 o clube foi obrigado a fazer o ‘ano zero’. O Caldas atravessava dificuldades económicas, tinha uma dívida muito grande. Na cidade falava-se até da possibilidade de mudar de nome para não pagar as dívidas, que eram acima de 500 mil euros. Em boa hora chegou uma direção nesse ‘ano zero’ e a partir daí o Caldas passou a ser um clube cumpridor”, assinala ao Bancada o líder do clube desde outubro do ano passado, depois de ter presidido durante cerca de seis meses uma comissão administrativa e de ter feito parte da direção nos últimos dez anos.

Foi já com Jorge Reis no poder que em fevereiro deste ano, o clube, que foi criado em 1916, apresentou contas com lucro. “O ano passado fizemos o centenário e tínhamos o lema que era ‘100 anos, sem dívidas’. Conseguimos concretizar isso. Somos um emblema saudável, com as dificuldades próprias de um clube que não tem muitas fontes de rendimento, mas que tem algumas parcerias que permitem cumprir religiosamente os compromissos. Os atletas não retiram daqui grandes dividendos, mas sabem que o pagamento é certo e que o que é prometido é cumprido. É com base nesse compromisso que o Caldas é um clube respeitado e respeitador”, descreve.

Formação a render frutos e um goleador em ascensão

O plantel do Caldas é composto por 12 jogadores que passaram pela formação do clube. Depois, há outros jogadores vêm das redondezas. Óbidos, Bombarral, Nazaré, Torres Vedras, Leiria ou Atouguia da Baleia são as outras terras do Oeste representadas na equipa. As únicas exceções são os brasileiros Rony Ramos e Felipe Silva. Esta aposta é a bandeira do clube e foi intensificada após o tal ‘ano zero’.  

“Nesse ‘ano zero’ houve o compromisso de ficar com atletas oriundos da formação e ainda mantemos essa vertente, uma vez que mais de 50 por cento do plantel é oriundo das camadas jovens do clube. Nesse ‘ano zero’ estivemos quase a descer aos distritais, safámo-nos nas últimas jornadas, mas era um projeto assumido. Dessa forma conseguimos revitalizar o clube e transportá-lo para aquilo que é agora, um clube respeitado no Campeonato de Portugal e muito falado a nível nacional, sobretudo pelo trajeto que está a ter na Taça de Portugal”, frisa Jorge Reis.

José Vala é o timoneiro da equipa e está identificado com a realidade da aposta no valor local, ou não fosse ele também um antigo jogador do clube, com um passado de treinador tanto no Caldas como noutras equipas da região. “O Caldas sempre foi um clube que viveu com a filosofia de utilizar jogadores da formação. O investimento que se fazia era para identificar jogadores dos Distritais, de Leiria, e tentar ir buscá-los. Essa é a nossa realidade”, sublinha o técnico, de 45 anos, que assumiu o comando do Caldas na temporada passada, pela terceira vez na carreira.

Foi aí que, numa dessas incursões pelos clubes distritais, descobriram João Rodrigues, o jovem que é um dos melhores marcadores de todo o CNS – só Marcelo Santiago, do Recreio de Águeda, o supera, com dez golos. Depois de ter feito a formação no AE Óbidos e também o primeiro ano de sénior, o jovem avançado rumou ao Caldas e não demorou a mostrar a veia goleadora. Sete golos na época de estreia, 13 em 2015/16, 14 na última época e mais dez este ano. José Vala não poupa elogios ao pupilo e garante que este está talhado para altos voos. Isto depois de já se ter mostrado aos três grandes, mas sem sucesso.

João Rodrigues (ao centro) é o goleador de serviço so "pelicanos". Foto: Caldas SC/Facebook

“Tenho o privilégio de ter treinado o João quando ele ainda era sub-11, sub-12 e sub-13. Já o conheço há muitos anos e a qualidade não vem de agora. Sempre deu nas vistas e chegou a ir treinar ao Benfica, Sporting e FC Porto. Nunca ficou, mas acho que foi por nunca ter mostrado o real valor que tem. É um miúdo muito reservado e fechado e tive a ideia que ele não mostrava o real valor porque não queria. Agora, é um miúdo que quer ser profissional e está a fazer tudo por isso. Já no ano passado fez. Não tenho dúvidas que a equipa que apostar no João, se lhe proporcionar o acompanhamento adequado, vai ter um caso de sucesso. É mais que um ponta de lança. Faz os golos, mas também vem buscar a bola atrás. Sabe estar na área, mas também progride bem com a bola de trás para a frente. Vejo um futuro muito risonho ao João”, assevera o técnico.

Ainda assim, mesmo com o talento goleador do avançado revelação do CNS, José Vala garante que é complicado manter o clube na senda da estabilização. “O que sinto, tanto pelo ano passado como por este ano, é que cada vez começa a ser muito mais difícil garantir a permanência. Com a extinção da Terceira Divisão, os clubes que estão no CNS, sobretudo na Série D, são praticamente profissionalizados. Mas esta é a filosofia do clube, que tem uma excelente formação a dar frutos. Vamos aproveitando isso e acho que temos tido algum sucesso”, salienta.

“Que me desculpem os outros clubes, que respeito muito, mas o Caldas é o clube mais representativo desta zona. Pelo passado e pelos anos de existência. Se não temos condições para contratar jogadores profissionais temos de recorrer aos que dão mais garantia na região. É isso que fazemos, até nas camadas jovens”, sustenta o presidente do emblema que em 2007/08 e 2012/13 foi considerado clube de excelência na formação por parte da AF Leiria.  

A preparar a festa da Taça no “mini Jamor”

Depois de ter eliminado o Lourinhanense na estreia, seguiram-se triunfos sobre o Olímpico do Montijo, Cesarense e FC Arouca na última eliminatória. Agora, vem a Académica, que terá a missão de visitar as Caldas da Rainha e um lugar que começa a tornar-se cada vez mais especial: o “velhinho” Campo da Mata. Antes da tradicional romaria à mata nacional do Jamor, para a final da competição, ainda haverá muita festa na mata das Caldas das Rainhas, onde o clube já prepara uma receção a preceito aos “estudantes”.

“Em primeiro lugar queremos fazer do jogo com a Académica um dia de festa, um jogo de convívio e de Taça. O nosso campo fica na mata das Caldas da Rainha, tem um enquadramento extraordinário. Nas outras eliminatórias temos feito uma festa como se fosse a festa do Jamor. A imprensa até tem chamado a isto o ‘mini Jamor’. Já falei com o presidente da Académica e vamos fazer disto uma festa, com confraternização entre as equipas e entre adeptos, porque o futebol não é um caso de vida ou morte, nem uma guerra. Os adversários não são inimigos, são apenas adversários. Vamos querer ganhar, sempre com respeito uns pelos outros. As Caldas é uma cidade que recebe bem, que está em constante evolução e desenvolvimento e queremos acolher bem os nossos adversários para fazer desta eliminatória uma festa”, reforça Jorge Reis.


Aqui está a prova de que nem só no Jamor se faz a verdadeira festa da Taça. Foto: Caldas SC/Facebook

Com a atual participação o Caldas SC já igualou um registo da época dourada do clube. Desde 1957/58 que o clube não chegava aos oitavos-de-final da prova. Nesse ano perdeu nessa mesma fase para o Salgueiros. Na época anterior também havia atingido os “oitavos” e até chegou a empatar na Luz, mas um bis de José Águas ajudou as águias a vencer por 3-0 nas Caldas da Rainha - o Benfica acabaria por vencer a Taça nesse ano. Mas a grande caminho do clube na Taça aconteceu em 1955/56, quando só foi travado pelo Belenenses nos quartos-de-final, por 3-2, fora de casa. No entanto, nessa altura a Taça tinha menos equipas e o Caldas era um clube de primeira.

Agora, o panorama é bem diferente. Mas se o conjunto de Oeste surpreender a Académica iguala esse registo histórico. Vontade não falta. “Chegando a este patamar e sabendo que o adversário é a Académica, com todo o respeito pela Académica, que é uma equipa profissional, claro que o objetivo é eliminá-los. O Caldas é um clube completamente amador, desde os jogadores aos treinadores. Não temos atletas profissionais, ou trabalham ou estudam. Não pagamos ordenados profissionais. No entanto, com todo o respeito pela Académica, queremos vencer”, atira o presidente dos “pelicanos”.

“Fosse contra quem fosse, teríamos sempre o objetivo de passar. A probabilidade, consoante a mais-valia do adversário, vai diminuindo. Mas contra a Académica as nossas possibilidades não fogem muito das que tivemos frente ao Arouca. Vamos esperar que tenhamos um dia feliz. Para ganharmos este tipo de jogos têm de acontecer duas coisas: superarmo-nos e esperar que a Académica não tenha um dia feliz. Vamos esperar que isso se cônjuge e que tenhamos mais um dia de felicidade”, deseja o técnico José Vala.

Caso a equipa continue a surpreender na prova, já se perspetiva nas Caldas uma eventual receção a um grande. Algo que não acontece há mais de 50 anos, pois a última vez que defrontou um dos três maiores clubes do futebol nacional foi em 1960/61, quando perdeu por 11-0 frente ao Benfica, na Luz, em jogo dos 32 avos-de-final da Taça. “Um clube como o nosso depende muito de algumas fontes de receita, por isso desde a primeira eliminatória que o nosso objetivo é encontrar um clube grande, até pelo prestígio que dá. É o nosso objetivo e de qualquer outro clube”, assume Jorge Reis.

O sonho pode estar à distância de um passo. Mas, e se isso acontecer? Num ano marcado por mudanças de estádios de clubes que tinham o desejo, mas não tiveram as condições de receber os grandes, o que aconteceria no caso do Caldas? O jogo manter-se-ia no “mini Jamor”? "Tudo faremos para que isso aconteça. A FPF, que organiza a Taça, tem de estabelecer critérios que sejam uniformes e transversais a todos os clubes. Não consigo conceber que o Lusitano de Évora tenha ido jogar a Belém, pois não tem nada a ver com a festa da Taça. Há que criar condições para que os clubes mais pequenos tenham a hipótese de receber os grandes. Nós temos um campo já velhinho, mas iremos adequar-nos e adaptar-nos de maneira a que possamos receber na nossa casa um clube grande. Nem estou a ver isso doutra forma”, promete o presidente.


O "velhinho" Campo da Mata fica inserido na Mata das Caldas da Rainha, o que lhe confere um ambiente particular. Foto: Caldas Sc/Facebook

“Fator casa” preponderante

Se a aposta na formação é uma política que se mantém há alguns anos, também a fortaleza do Campo da Mata tem ajudado o clube a alcançar as metas. O registo caseiro é uma das marcas da equipa de José Vala, que no ano passado venceu 12 dos 16 jogos ali efetuados para o campeonato, perdendo apenas dois. Esta época a receita tem sido a mesma. Depois de perder para o Coruchense na jornada inaugural, a equipa empatou o jogo seguinte e, desde então, só sabe ganhar. “Os jogos em casa são um ponto forte, no ano passado conquistámos quase todos os pontos em casa e este ano só perdemos na primeira jornada. Queremos manter esse registo”, refere José Vala.

“Foi um jogo bastante difícil para nós”, recorda André Luís, técnico que se pode gabar de ter sido o único a vencer esta época no Campo da Mata. “Acabámos por ter a sorte do jogo. Tivemos a sorte de fazer dois golos antes do Caldas e isso foi um fator importante. Mas foi muito difícil e não era descabido se o Caldas empatasse. Tivemos de segurar o resultado com unhas e dentes. Percebeu-se perfeitamente que o Caldas tinha uma série de jogadores de muita qualidade. Não é por acaso que o têm o melhor marcador do campeonato - e que marcou ao Arouca”, sintetiza o jovem técnico do Coruchense.

André Luís faz ainda uma radiografia da equipa caldense ao Bancada. “O ataque é bastante forte, tem jogadores de muita qualidade. O meio-campo é muito trabalhador e tem jogadores também de qualidade. A defesa já acho que é um pouco mais débil, mas é uma equipa compacta e com muita experiência. Depois tem alguma juventude que dá intensidade ao jogo da equipa. É uma equipa organizada e que trabalha muito bem”, descreve o técnico, que foi eliminado da Taça pelo… Arouca.

“A Taça é uma prova diferente. No campeonato o Caldas tem os mesmos ponto que nós. Todos os anos há surpresas na Taça, este ano calhou ao Caldas, no próximo ano será a outra equipa. Mas penso que estão a fazer um belo trabalho, até porque eliminaram o adversário que nos tinha eliminado na ronda anterior. Perdemos em Arouca e isso faz toda a diferença. Apanhar estas equipas em casa faz toda a diferença, se nós tivéssemos jogado em casa também teria sido mais equilibrado”, argumenta.

Mas regressemos ao primeiro encontro da época, em que a equipa de Coruche venceu por 2-1 nas Caldas... O herói do jogo foi o avançado Rui Caniço, com um bis. Ele que também vê no Caldas SC um adversário de qualidade. “Trata-se de uma equipa forte, com bons princípios de jogo. São uma equipa experiente, que tentou impor desde início o ritmo de jogo, e nós tivemos alguma dificuldade na entrada do jogo”, relembra o avançado, que passou pelas camadas jovens de Benfica e Estoril-Praia.

“Gostam de meter a bola no jogo e fazê-la circular. Facilitam muito os processos e no último terço são bastante fortes. É uma equipa móvel, uma equipa bastante completa. E isso está à vista no campeonato que tem vindo a realizar. Têm ainda uma defesa experiente, que não facilita em momento nenhum. Jogam menos bonito se for caso para isso. Os centrais são mais fixos, muito experientes e gostam de ir á ‘luta’. Já os laterais são muito ofensivos e causam muitas vezes desequilíbrios no ataque”, analisa Rui Caniço.

Estas ideias são corroboradas pelo próprio técnico caldense. “Creio que o ponto forte da equipa é o processo ofensivo, sobretudo na fase de construção, envolvendo muitos elementos. Se calhar, depois não somos suficientemente eficazes e o último passe não é o ideal, mas, mesmo quando os adversários pressionam alto, conseguimos sair a jogar com qualidade. Penso que é uma vantagem nossa”, afirma José Vala, que no passado domingo conseguiu alcançar um empate na deslocação ao terreno do Vilafranquense, atual vice-líder na Serie D do CNS.

Eis os heróis do Caldas que fizeram tombar o Arouca na eliminatória anterior e que não pretendem parar por aqui. Foto: Caldas SC/Facebook

No campeonato o Caldas SC ocupa apenas o nono lugar, com 15 pontos, estando ligeiramente acima dos lugares que ditam as equipas que vão lutar pela permanência na segunda metade da época. Tem 15 golos marcados e 14 sofridos, o que denota algum equilíbrio. No entanto, é na Taça que a equipa está a surpreender. E pode continuar a fazê-lo dentro de dias - a receção à Académica está inicialmente marcada para dia 13 de dezembro, quarta-feira, às 15 horas, mas a data e horário ainda poderão sofrer alterações. Ambição e personalidade é coisa que não falta na terra da famosa cerâmica de Bordalo Pinheiro. Nem mesmo uma “mini” festa da Taça, para aqueles que nunca tiveram oportunidade de ir ao Jamor.