Jogo do Povo
Vilar de Perdizes. Um restaurante abençoado para os feiticeiros de 'Dom' Gamito
2023-05-18 15:25:00
"A manutenção neste formato equivale a ser cinco vezes campeão", diz Vítor Gamito, treinador do Vilar de Perdizes

Não consta que Vítor Gamito seja cenarista ou produtor de Hollywood, mas nestes tempos modernos, escritos e inventados para ver episódios a eito de filmes e séries, bem que Vilar de Perdizes poderia ser o cenário de um roteiro cinematográfico de excelência ligada ao futebol. E a realização, nesse caso, poderia ser entregue a 'Dom' Gamito.

A equipa de futebol da terra brilhou no Campeonato de Portugal numa Série A carregada de incertezas e de intensas batalhas. Vítor Gamito, o treinador, soube ser roteirista e realizador de uma campanha de sucesso e é evidente que os atores em campo e fora dele ajudaram a valorizar o argumento proposto e concretizado de um clube estreante nos nacionais.

O Vilar de Perdizes, na primeira grande produção no Campeonato de Portugal, revelou estar perfeitamente identificado com as cenas do filme que foi sendo rodado. Garantiu uma viagem tranquila pelos diferentes episódios onde a grande dúvida foi mesmo escolher o cenário para aconchegar o estômago em dias de rodagem. Curioso? Vamos rebobinar a campanha do emblema barrosão. E como se diz no cinema, sente-se, relaxe. "Welcome, please make yourself at home!", que é como quem diz, "fique à vontade" ou "sinta-se em casa".

Numa terra onde os medos e o oculto se enfrenta com festa, na popular celebração das sextas-feiras 13 sob a batuta do padre Fontes, não é de admirar que os 'feiticeiros' de Vilar de Perdizes, no campo, tenham encarado a Série A do Campeonato de Portugal com a natural confiança de quem acredita no esforço e no trabalho quotidiano. Ao Bancada, Vítor Gamito explicou que não foi preciso recorrer a mezinhas para ter sucesso. Foi, isso sim, preciso confiar que há sinais da natureza que convém levar em conta, até porque o mundo da bola está carregado de superstições.

"O presidente decidiu fazer o desvio e fomos almoçar à Adega Amarela"

"O futebol está intimamente ligado à cultura de cada povo, e em Vilar de Perdizes isso não é exceção, estando interligado o futebol com a cultura popular, o misticismo, as superstições e aquilo em que um povo acredita", contou Vítor Gamito, revelando um episódio engraçado que levou a equipa dos 'guerreiros da raia' a procurar sentar-se à mesa sempre no mesmo restaurante. Até porque como diz o padre Fontes, figura incontornável da região barrosã, "não acredito em bruxas mas que las hay, las hay".

"Num dos primeiros jogos fora de casa, almoçamos num restaurante na zona de São Martinho do Campo, a Adega Amarela para defrontar o São Martinho local, e ganhamos por 4-0. No jogo seguinte fora de portas, na Póvoa de Lanhoso, fomos almoçar a um outro restaurante porque ficava um pouco desviado e perdemos por 1-0 no último minuto", explicou o treinador que realçou que, desde então, se passou a achar que havia um "restaurante abençoado".

"Voltamos à Adega Amarela e nova vitória por 2-0 no Dumiense", observou Vítor Gamito, explicando que na visita a Amarante o restaurante escolhido foi novamente outro. E novamente uma derrota.

Em casa dos alvi-negros de Renato Coimbra, o Amarante bateu o Vilar de Perdizes. "Como também ficava desviado, fomos a outro restaurante... novamente derrota por 3-2, outra vez no último minuto". 

A julgar pelos resultados, tentou-se que a Adega Amarela fosse o epicentro gastronómico dos atores do Vilar de Perdizes e de todo o staff de produção ao longo dos vários episódios rodados fora de portas.

"Voltamos à Adega Amarela para as duas jornadas seguintes: duas vitórias frente ao Merelinense e Tirsense. Na jornada seguinte vem o dilema: Vila Meã fica um pouco desviado, a cerca de 35 quilómetros, e o presidente decidiu fazer o desvio para irmos à Adega Amarela". 

"Como diz o nosso querido padre Fontes 'não acredito em bruxas mas que las hay, las hay'"

A curiosidade foi saber o resultado. Gamito logo desfaz a dúvida em jeito de confirmação. "Marcamos aos 90+2' e 90+4' minutos para o 2-2 final". Estava criada a tradição.

"Nunca perdemos nos sete jogos em que fomos almoçar a esse 'restaurante abençoado'. Como diz o nosso querido padre Fontes 'não acredito em bruxas mas que las hay, las hay'".

Até porque Gamito recordou um célebre episódio de alhos no bolso em tempo de vitórias a que se seguiu um tempo de desaires quando os ditos alhos desapareceram.

Para uma equipa da região barrosã que se estreava nestas lides nesta época, a manutenção era o objetivo e Vítor Gamito preparou o guião para um final feliz que, como na sétima arte, acabou por chegar, com sabor a campeão vezes cinco.

"A manutenção neste formato equivale a ser cinco vezes campeão"

"Para equipas do perfil do Vilar de Perdizes, alcançar a manutenção neste formato equivale a ser cinco vezes campeão", admitiu o treinador que já tinha passado pelo Campeonato de Portugal aos comandos de outra equipa transmontana.

"A minha época de estreia no Campeonato de Portugal pelo Vidago foi tremendamente difícil, num Campeonato de Portugal fortíssimo quando ainda não havia Liga 3", relatou Vítor Gamito, lembrando que aquele foi também um contexto diferente com as regras da pandemia a ditarem as cenas dos episódios seguintes onde reinava a incerteza.

Para sobreviver numa Série A tão intensa, Vítor Gamito revelou que desde cedo a equipa do Vilar de Perdizes, que tinha subido como campeã no ano antes desde as distritais de Vila Real, sabia que era preciso começar antes da concorrência "numa Série A equilibrada com clubes históricos".

"Éramos os únicos estreantes", lembrou, acrescentando que foi preciso arrancar a preparação "com bastante antecedência", até porque esta equipa não tinha um estúdio próprio aprovado para fazer de casa, o que torna o filme do Vilar de Perdizes ainda mais glorioso em 2022/23.

"Considero que se tivéssemos a oportunidade de jogar em nossa casa teríamos obtido uma melhor classificação, até porque mesmo no Complexo Francisco Carvalho, a quem agradecemos a cedência do espaço e a forma como nos receberam, não tivemos a oportunidade de treinar regularmente", observou o treinador do Vilar de Perdizes, referindo nesta entrevista ao Bancada que fazer uma época inteira a jogar em casa mas fora dela "foi mais um fator de adversidade".

"Obrigou-nos a trabalhar ainda mais, e esse binómio adversidade - trabalho, cada vez que aparecia uma adversidade mais tinhamos que trabalhar, foi a fórmula para esta época de sucesso".

Na ficha técnica desta produção, Vítor Gamito não escondeu a alegria que lhe deu trabalhar com uma vasta equipa de profissionais "dedicados" que diariamente procuraram reunir todas as condições para que quer nas filmagens quer nos dias de exibição dos episódios o Vilar de Perdizes fosse bem sucedido.

Para isso, Gamito contou com a ajuda de Cláudio Teixeira (metodólogo), João Tunes e Leonel Fernandes na logística do treino, jogo e gestão do grupo, além do contributo de Filipe Fernandes na análise da performance e dos adversários, sem esquecer as tarefas relevantes do treinador de guarda-redes Diogo Pires e do aprendiz de 'feiticeiro' Vítor Pereira, treinador estagiário, a quem coube a tarefa de prevenção de lesões ao longo da época.

Como é que uma equipa técnica trabalha a este nível?

Ao Bancada, Vítor Gamito explicou também como é que uma equipa técnica trabalha a este nível na quarta divisão do futebol português.

"Investimos muitas horas", admite o treinador do Vilar de Perdizes. "Resumidamente num microciclo padrão, os treinos de terça e quarta-feira estão direcionados para o aperfeiçoamento do nosso modelo de jogo e os de quinta e sexta-feira são dirigidos para aquilo que é a estratégia para o jogo."

"Trabalha-se cada vez com mais qualidade nas divisões inferiores, equipas técnicas com muita capacidade e bem formadas, com ambição , grande adaptabilidade, onde os jogos são decididos ao pormenor e com grande influência do lado estratégico do jogo, que é aquele momento em que preparamos aquilo que acreditamos que será o jogo do fim de semana". Palavra do treinador que perde horas de sono se entender que as coisas não foram bem preparadas.

"Perco o sono não durante a preparação do jogo, mas sim se sentir que o jogo não foi bem preparado", realçou este jovem treinador que já conta com experiências lá por fora, como por exemplo no Levante, de Espanha.

Quem é o Vítor Gamito fora do futebol?

Para quem está inserido na rodagem do futebol, pensar a rotina sem bola é uma tarefa "difícil", admite Vítor Gamito. "Confesso que sinto bastante dificuldade em 'desligar o chip' do futebol, principalmente nas derrotas, e mesmo nos tempos livres ou férias, falar com o presidente, adjuntos, tentar perceber o porquê de algum comportamento ou problema que identifique num jogador durante um treino, atualizar conhecimentos ou observar jogadores", enfatiza Vítor Gamito, sublinhando que, pois claro, há vida para lá da bola.

"Gosto de estar com os meus amigos e principalmente com a família à mesa com um bom vinho e uma boa conversa, brincar com o meu cão ou ver uma série com a minha namorada", explicou o treinador do Vilar de Perdizes, não escondendo que ser treinador neste patamar é um privilégio.

Vítor Gamito com José Neto

"Há neste momento 116 equipas técnicas, entre milhares, a treinar em contexto de Campeonatos Nacionais em Portugal, em seniores, pelo que somos uns privilegiados. Se quisermos ser uma das 36 que estão nas Ligas profissionais, teremos que ser mais e melhores profissionais do que os que lá estão", traçou a ideia Vítor Gamito, ele que tem no pai a sua inspiração.

"Por transmitir principalmente pelo seu exemplo aquilo que de mais importante a vida tem", expressou Gamito, dizendo que tem em José Neto, uma das mentes mais iluminadas na arte do pensamento de futebol, em Portugal, um dos obreiros por ser hoje treinador.

Foi, de resto, o académico, que chegou trabalhar com José Maria Pedroto, que despertou em Vítor Gamito "a vontade de ser treinador de futebol".

"É de facto alguém com um espírito inigualável", acrescentou Gamito, que vê em José Mourinho, Jorge Jesus, Unai Emery e Jurgen Klopp outras referências.

"Os torniquetes do estádio serviam de baliza"

Na reta final da exibição do filme, Vítor Gamito revelou ao Bancada que vai continuar a lutar diariamente por um futebol alegre, o mesmo que lhe vem à memória quando se recorda de, em menino, saborear enquanto esperava para ver os treinos do Desportivo de Chaves.

"Passávamos as tardes a jogar futebol num campo que havia no prédio onde morava, ou então a ver os treinos da equipa sénior do Chaves e a fazer minitorneios, com os torniquetes do estádio a servirem de balizas".

Gamito, de 35 anos, ex-guarda-redes e agora treinador, recorda com carinho que antes dos treinos a malta da formação já tinha várias horas de treino nas pernas. "Quando íamos treinar já tínhamos facilmente quatro ou cinco horas de jogo nas pernas".

É todo este legado do passado aliado a um lado mais profissional do presente que permitem pensar o futuro do Vilar de Perdizes com o mesmo sucesso até aqui, buscando a poção sagrada com 'Dom Gamito'.

O técnico continua a imaginar o futebol pelo lado mais bonito, à espera que o público continue a procurar carregar a equipa para o sucesso como o povo que no cinema busca o melhor lugar para assistir aos filmes ou, na linguagem de Vilar de Perdizes, como as pessoas que procuram sempre o melhor espaço a cada esconjuro da queimada, do emblemático padre Fontes, também conhecido como 'Dom Bruxo'.