Foi logo no terceiro minuto da receção ao FC Metz que fez o golo da vitória do FC Nantes. Mais uma para a nova equipa de Claudio Ranieri, que vai numa sequência de seis jogos sem perder na Liga francesa, com apenas um empate concedido e um golo sofrido pelo meio. O técnico italiano está a proporcionar mais um arranque prometedor, desta vez em França, colocando o FC Nantes num surpreendente quarto posto. Mas não vamos recordar aqui o conto de fadas que Ranieri escreveu no Leicester City. Vamos, antes, falar de outra “história da Cinderela”. A de Emiliano Sala, o autor desse golo – o segundo esta época na conta pessoal. Um avançado argentino que iniciou a carreira sénior no futebol distrital alentejano. Isso mesmo, leu bem.
Esta história leva-nos até ao Crato. Foi ali, naquele concelho do Alto Alentejo, que, de forma algo curiosa, chegou um jovem argentino completamente desconhecido. Após as primeiras impressões, muitos previram logo um futuro risonho a Sala. Anos depois de ter “aterrado” na distrital de Portalegre, brilha na Ligue 1, tendo marcado 15 golos na última época, onde foi o melhor marcador de uma equipa que deu nas vistas sob a batuta de Sérgio Conceição. E foi mesmo o técnico português a acreditar no avançado argentino, dando-lhe a titularidade e transformando-o num goleador. No entanto, enquanto Emiliano Sala faz estragos nos relvados franceses, no FC Crato ainda se esperam os dividendos pela descoberta de um verdadeiro diamante.
“O Sala? Oh amigo, não me fale nesse homem”. É assim que começa a conversa, entre gargalhadas, com José Manuel Curado, atual presidente do FC Crato, que em 2009/10 também liderava os destinos do clube alentejano, acabado de descer da Terceira Divisão. "Tive uma trabalheira com ele. Fui de carro daqui para Málaga buscá-lo. Saí daqui às cinco da manhã, cheguei às 20 horas e ele ainda treinou", rebobina. Como o descobriu? "Foi o presidente da Câmara da altura que me disse para ir buscá-lo – já se sabe que estes clubes não sobrevivem sem o apoio das Câmaras… Não sei como é que o presidente o conhecia. Só me disse para ir busca-lo e fui", concretiza ao Bancada.
O impacto de Sala nos treinos foi imediato. “Nem estava à espera que ele viesse”, começa por dizer-nos Luís Leandro, técnico do FC Crato naquela temporada e atual diretor desportivo do clube. “Bastou treinar uma ou duas vezes para percebermos a qualidade dele. Nos treinos fazia maravilhas. Tinha uma grande classe, não era daqueles jogadores de área que ficavam à espera de a bola lá chegar. Tinha uma força enorme, brigava muito e era ele que batia nos centrais e não o contrário. Era muito rápido e tinha uma finta muito curta”, relembra.
O antigo técnico recorda ainda um episódio concreto com o avançado. “Acabou por fazer só um jogo. Foi um dérbi, fez um jogão e marcou. Era um jogo difícil e ao fim de dez minutos tivemos uma expulsão, mas com ele em campo era como se tivéssemos dois ou três jogadores a mais. Via-se que era diferente e tinha uma qualidade acima da média. Quando fui treinador dele já tinha jogado muito tempo nos clubes aqui da região e vi muitos jogadores, mas como ponta de lança foi, sem dúvida, o melhor que vi. Todos o que o viam jogar e treinar ficavam encantados com ele”, frisa Luís Leandro, destacando também o lado “humilde” de Emiliano Sala.
Contudo, a aventura de Sala no Crato durou pouco e o FC Crato nada lucrou com a aposta no jogador. “Tivemos de pagar o certificado internacional e foi caríssimo. Foi registado na Europa por nós. Depois disso deu-lhe saudades e quis ir à Argentina passar o Natal. Nunca mais veio. Acabou aí, não regressou”, sintetiza o presidente do clube. No ano seguinte o avançado argentino seguiu viagem para Bordéus, onde foi jogar na equipa B do Girondins. “Entretanto, apareceu em França e agora está onde está. Mas a primeira inscrição é nossa. Ainda não recebemos qualquer dividendo disso. Até hoje ainda estamos a aguardar. Mas também estamos aqui no cu de Judas, ninguém nos ajuda”, lamenta José Manuel Curado.
Também o secretário do clube, Fernando Trapola, se lembra bem do processo. “Pagámos à volta de dois mil euros pela transferência. Viu-se logo que era um grande jogador. Fez alguns jogos connosco e marcou alguns golos. Depois foi-se embora por causa de uma namorada, embora eu pense que não foi isso, mas, sim, alguém que tentou convencê-lo a ir para outro lado”, desabafa. O clube ainda pediu ajuda, mas até hoje continua sem conseguir algo em concreto.
“O FC Crato pensa que tem o direito de formação sobre ele, pois chegou cá ainda com 18 anos. Enviámos vários emails para a Federação Portuguesa de Futebol, mas a nossa Federação só se interessa pelos grandes, não quer saber dos pequeninos. A jurista da Federação disse que tínhamos de nos informar perante a Federação Francesa. Quer dizer, somos portugueses e temos de falar com a Federação Francesa... Isto andou assim e nunca se resolveu. Uma vez esteve cá o José Carlos [antigo lateral internacional português], que era o vice-presidente do Sindicato dos Jogadores. Contámos a ele a situação e disse-nos que ia informar-se, mas que deveríamos ter, no mínimo, direito a indemnização. Ficou de ver isso, mas até hoje nada”, lamenta o secretário do clube, antes de “ilibar” o jogador argentino: “Apesar de tudo, adoramos o Sala. Não ficámos nada surpreendidos com este sucesso porque já sabíamos que ele era um grande jogador”.
O Messi do Crato e um Projeto como referência
Já ficámos a conhecer a passagem relâmpago de Sala pelo Alentejo antes de rumar ao estrelato em França. No entanto, falta saber como um presidente de uma autarquia do Distrito de Portalegre interveio no processo da aquisição do jogador. Fomos então falar com José Correia da Luz, que esteve à frente da Câmara Municipal do Crato entre 1997 e 2009 e que descreve a "descoberta" de Emiliano Sala ao pormenor. “Chamei o José Manuel Curado, que era e ainda é o motorista da Câmara, abri o computador no Google Earth e organizei um trajeto de ida e volta para Málaga. Vimos o itinerário e disse-lhe para ir ao Estádio do Málaga e quando lá chegasse para me ligar. Fiz as contas aos custos da viagem, calculámos cerca de 500 euros, e arranjei uma pessoa para lhe fazer companhia na viagem e tratar do lado financeiro. O Sala estava no Málaga CF, mas nem sei se treinava na equipa principal”, explica o antigo edil.
Descrito o método, o que queremos realmente saber é como teve conhecimento da existência do jovem de 18 anos. A história é longa e envolve mais dois jogadores argentinos: Guido Abayián, que tinha passado pelas camadas jovens do Benfica, e Mauricio Vaschetto, que era localmente apelidado de "Messi do Crato". Mas também inclui outro argentino, responsável por um projeto de futebol, que, curiosamente ou não, tem ligações ao… Girondins Bordéus.
“Quando subimos à terceira divisão, no ano anterior, queríamos ter uma equipa de valor e fomos buscar um argentino que tinha estado nas escolas do Benfica, o Abayán. Era um grande futebolista e nem sei como ele não foi mais longe cá em Portugal [saiu para clubes de divisões inferiores na Argentina, passando depois pelo Chile, Uruguai, Gibraltar e Bulgária, até regressar na última época ao país natal]. O Abayan tinha vindo através de um amigo comum, que também me falou do Mauricio Vaschetto, que em termos técnicos era uma espécie de Chalana. Cresceram ambos juntos numa escola de Santa Fé que se chama Club Proyecto Crecer, onde o meu amigo Julio Guillermo di Meola é diretor técnico. Queríamos construir um projeto idêntico aqui”, assegura-nos Correia da Luz.
O passo seguinte foi os dois craques argentinos falarem num amigo. Algo que deixou o presidente da Câmara, que tinha influência nas decisões do clube, algo relutante. “Entretanto, o Guido e o Mauricio acabaram por sair, porque eram de um nível que o FC Crato não tinha hipóteses de manter. Mas na última época falaram-me de um amigo. Nós eramos bastante próximos e falávamos muito. Disse-lhes que não queria amigos, porque o que eles queriam era construir aqui uma espécie de clã, o que era normal, mas o clube precisava era de um bom jogador. Mas eles disseram que o amigo era muito bom jogador, melhor que qualquer outro. Perante a insistência acabei por falar com o Curado e com o Meola, que deu instruções ao rapaz”, recorda.
“O Sala estava em Málaga sem certificado e se o clube o quisesse inscrevê-lo nem tinha conseguido. Tratámos do certificado internacional, ele chegou e fizemos com que fosse bem recebido. O Crato é uma terra pequena e, obviamente, nunca poderia ser um lugar de destino para quem tivesse ambições. Eu tinha consciência disso. Ele chegou, começou a treinar e a malta começou logo a ver que se tratava de um jogador de outra galáxia. Vieram os jogos e ele marcava golos com uma facilidade tremenda. Marcava golos de grande nível”, garante o antigo presidente da Câmara.
No entanto, questões políticas acabaram por mudar o rumo dos acontecimentos. Antes das saudades de casa e do Natal passado na Argentina, frisados por José Manuel Curado, realizaram-se as eleições autárquicas, em outubro de 2009. Correia da Luz, candidato pelo PS perdeu as eleições para o rival da CDU e deixou a liderança da autarquia. “Entretanto terminei o meu mandato como autarca em outubro de 2009 e saí, pelo que não foi possível dar continuidade ao projeto que queria implementar e que nunca mais existiu aqui. Após a minha saída, pouco tempo depois ele foi embora também. Via nele um craque, com quem o FC Crato poderia ter tirado partido financeiramente da sua transferência”, sublinha.
É então que segue viagem para Bordéus, clube do qual o Proyecto Crecer é filial. Em 2010/11 atuou na equipa B, estreando-se na equipa principal na época seguinte. Em 2012/13 foi emprestado ao US Orléans, do terceiro escalão, e marcou 19 golos. No ano seguinte mais 19 golos, mas no Chamois Niortais, da Ligue 2. Regressou à base em 2014/15, estreando-se a marcar pelo Bordéus, mas na segunda metade da temporada foi emprestado ao SM Caen, onde apontou cinco golos na Liga francesa. Despertou a cobiça do FC Nantes, que o contratou. No entanto, no Crato ainda hoje se espera pelos dividendos da descoberta da promessa argentina.
“Ainda mantenho contacto com ele e trocamos algumas mensagens. Andou a passear de clube para clube até que chegou um senhor chamado Sérgio Conceição e o tirou do banco, tornando-o no marcador de serviço da equipa [tinha quatro golos quando o técnico português chegou ao clube e acabou com 15]. O que fica dele é a saudade. Era um rapaz fabuloso, extremamente educado, muito simples. Mas a vida é mesmo assim e ele merecia ir para um sítio melhor mostrar a qualidade que tem. Não sei o que lhe aconteceria se continuasse em Málaga, sei apenas que precisou de alguém que o tirasse de um estado negativo para lhe dar importância. E foi isso que fizemos”, remata José Correia da Luz, depois de assegurar que a aposta em Emiliano Sala foi um “investimento exclusivamente pessoal”.