Portugal
O presidente-amigo que "estava sempre fora"
2018-06-25 19:00:00
Sousa Cintra assumiu a responsabilidade de comandar a SAD do Sporting nos próximos meses

É quase impossível ouvir algum adepto de futebol em Portugal que não tenha, pelo menos, ouvido falar de Sousa Cintra. Uns lembram-se bem, outros não tanto, mas o nome não é estranho a ninguém. O novo líder da SAD do Sporting nomeado pela Comissão de Gestão já foi presidente do clube e foi o principal responsável pelo 'Verão Quente' de 1993, quando Paulo Sousa e Pacheco rescindiram com o Benfica para assinarem pelo rival lisboeta. Mas Sousa Cintra é muito mais que isso: teve grandes equipas, provocou episódios inesquecíveis e nunca foi campeão nacional de futebol. E os jogadores do seu tempo recordam um "amigo" que, mesmo não estando sempre presente, se preocupava muito com o bem-estar dos atletas.

Natural de Vila do Bispo, no Algarve, Sousa Cintra mudou-se para Lisboa com apenas 15 anos para trabalhar no Hotel Tivoli. Entrou no mundo dos negócios ao servir como intermediário em compra e venda de terrenos e, depois do 25 de abril, começou mesmo a investir ele próprio. Adquiriu mais tarde a empresa de águas Vidago, Melgaço & Pedras Salgadas, vendendo depois o seu património à Jerónimo Martins num negócio que lhe valeu várias dezenas de milhões de euros. Já depois de ter passado pelo Sporting, Sousa Cintra dedicou-se à produção de cerveja no Brasil e em Portugal.

Mas é sobre a ligação de Sousa Cintra ao Sporting que vamos falar. Foi eleito presidente do clube em 1989, sucedendo a Jorge Gonçalves com 63.61% dos votos de 15299 sócios que fizeram desse ato eleitoral um dos mais concorridos da história dos leões. Depois de tomar posse a 1 de julho desse ano, foi ainda reeleito em 1991 e 1993 (sem oposição em qualquer um dos casos) e saiu em 1995. Com um estilo popular e de grande proximidade dos atletas, funcionários e sócios, marcou a diferença em relação aos anteriores dirigentes do Sporting e quem conviveu de perto com ele considera que os jogadores viam nele "um amigo". Craques como Balakov, Naybet, Luisinho, Iordanov ou Amunike foram contra

"Era uma pessoa muito, muito acessível, muito próxima dos jogadores. Não queria que faltasse nada aos jogadores. Falo por mim, nós víamos o Sousa Cintra como um amigo", começou por dizer Nélson, lateral-direito do Sporting entre 1991 e 1996, ao Bancada. "Lembro-me de algumas coisas que eram características dele. Por exemplo: íamos à sala da direção. Ele podia estar com as reuniões marcadas, mas se nós lá chegássemos éramos logo atendidos. O jogador tinha sempre prioridade", continuou. Carlos Jorge, central leonino entre 1992 e 1994, concorda. "Era uma pessoa fantástica que trabalhava com muito amor ao clube. Muito amigo dos jogadores", contou-nos.

Já Bilro, elemento do plantel em 1992/93, disse o mesmo: a proximidade entre Sousa Cintra e o plantel era mesmo real e, ao mesmo tempo, acontecia de forma "séria". A maior diferença para os dias de hoje, considera o antigo lateral-direto, era a boa relação "independentemente de questões de sucesso ou insucesso". "Muito cordial, muito frontal, muito assertivo. Muito séria na forma como abordou o contrato que fizemos, porque estava a fazer a transição de juniores para seniores na altura em que surge o Bobby Robson. (...) Sempre com uma proximidade muito grande, numa relação cordial e saudável. Nada daquilo que se vê hoje, são realidades completamente opostas. Ele tem essa capacidade de aproximação com os jogadores, um bom relacionamento independentemente de questões de sucesso ou insucesso", referiu o jogador que passou grande parte da carreira na UD Leiria e, mais tarde, virou-se para o futebol de praia.

Balakov foi um dos craques que Sousa Cintra contratou (Lusa)

Mas nem tudo era perfeito na relação de Sousa Cintra com os jogadores. Fruto dos vários negócios que comandava, o presidente não estava sempre presente. Nélson foi o mais crítico nesse aspeto e considerou mesmo que o dirigente "estava sempre fora". "Na altura, havia uma situação que era uma característica de alguns presidentes que o Sporting tinha. Tinha muitos negócios particulares e isso tira muito tempo a quem está no futebol. E o responsável pelo futebol do clube tem que estar em permanência, não pode estar fora muito tempo. E, na altura, o Sousa Cintra estava sempre fora", revelou-nos Nélson. Ainda assim, e apesar de confirmar a constante ausência de Sousa Cintra, Bilro considera que "não condicionava" os resultados da equipa. "Na altura, recordo-me que tinha alguma dificuldade em conseguir estar na presença do presidente. Acredito que fosse por causa da sua vida pessoal e profissional. Estamos a falar de contextos diferentes, hoje o Sporting tem a SAD. (...) Mesmo não estando, percebia-se que era uma pessoa omnipresente. Não era a ausência que condicionava alguma coisa".

Quem mais desvalorizou essa característica de Sousa Cintra foi Carlos Jorge. O madeirense até acha benéfico que o presidente, por vezes, se afaste da equipa para que não exista "excesso de confiança", comparando Sousa Cintra com Bruno de Carvalho. "Acho que o presidente não tem que estar todos os dias com os jogadores porque depois os jogadores têm excesso de confiança e isso também é mau. O presidente tem de estar nos momentos certos, quando a equipa precisa. No futebol, não precisamos de o ter todos os dias no treino. Antigamente era diferente. Hoje em dia é mais fácil ser presidente. Na altura, alguns presidentes estavam nos clubes por amor à camisola. Hoje não. O Bruno de Carvalho, por exemplo, vive do salário que tem no Sporting. O Sousa Cintra não era assim", disse Carlos Jorge.

Sousa Cintra também era muitas vezes destaque por momentos insólitos em que era protagonista. Uma vez, quando estava ao telefone com a 'TSF' em direto, partiu o vidro do carro depois de atirar uma garrafa contra uma janela que pensava estar aberta. "Agora parti o vidro aqui do meu carro, pá... Que granda porra. Estava a beber uma água. É preciso um gajo ser estúpido. É inacreditável. Como é que é possível eu fazer uma coisa destas? Pensei que tinha o vidro aberto. A janela estava fechada e parti o vidro", disse Sousa Cintra, em direto, à rádio. Outra vez, durante um jogo entre o Sporting e o Bolonha FC para a Taça UEFA, a 'RTP' filmou Sousa Cintra a dizer ao presidente italiano que este tinha "comprado o árbitro" depois de um lance em que se pedia penálti. E quem não se lembra do episódio que envolveu Mark Knopfler? Os Dire Straits vinham tocar ao antigo Estádio José Alvalade e os jornalistas perguntaram a Sousa Cintra o que achava de Knopfler, guitarrista e vocalista da banda. "É um bom jogador, mas o plantel está fechado", disse o presidente verde e branco segundo relatou Rui Miguel Tovar no livro '101 Cromos da Bola'.

Agora, Sousa Cintra está de volta ao Sporting para comandar a SAD até às eleições de setembro. Os tempos são outros, as funções são diferentes e a expetativa de ver o trabalho do algarvio existe. O futuro do futebol do Sporting está nas mãos de Sousa Cintra e essa responsabilidade já ninguém lhe tira.