Fontinhas, uma pequena freguesia em Praia da Vitória, na ilha Terceira, no arquipélago dos Açores, não aparece constantemente nas primeiras páginas dos jornais, não abre espaços noticiosos da televisão, nem preenche horas de programas de debate. Laboriosamente, Fontinhas trilha um caminho com um objetivo. Nem sempre é tempo de comemorar. Aparecem derrotas pelo caminho. Mas o importante é seguir e manter a ideia daquilo que se quer e pelo qual se luta, como escritor que faz manuscritos com letra embrionária e ínfima, que risca, apaga e volta a escrever.
E porque as grandes obras, afinal, estão sempre inacabadas, o roteiro do Grupo Desportivo Fontinhas já teve páginas de ouro, como os anos em que fazia da Liga 3 o seu palco. Mas há dias em que as lágrimas exteriorizam o que corre nas veias e as quedas são inevitáveis. Hoje, o Fontinhas está no Campeonato de Portugal e tenta voltar a um lugar onde já foi feliz. O Jogo do Povo, do Bancada, conversou com João Cortesão, o treinador que tem por missão devolver a vitória àquela praia.
"Se não fosse o futebol, não tinha conhecido tanta gente boa"
Fundado em 1975, e numa espécie de rápido 'trailerzito', é possível dizer-se que o Grupo Desportivo Fontinhas nasceu do suor e da paixão de muita gente e até há poucos anos disputava os campeonatos mais tradicionais do arquipélago.
A subida do clube da ilha Terceira ao Campeonato de Portugal deu-se em 2019/20. Daí à Liga 3 foi um pequeno salto, até que, na última temporada, não se segurou e voltou ao Campeonato de Portugal. Os desafios continuam a ser grandes para o clube que frequentemente enfrenta adversidades logísticas. Basta fazer notar que 'ver os aviões' é algo que entra no lado estratégico da temporada.
Até porque depois das viagens aéreas, e chegados a território continental, há sempre mais umas 'horitas' de viagem de autocarro até aos estádios onde se jogam as partidas da Série C do Campeonato de Portugal.
Contudo, João Cortesão prefere olhar para o 'copo meio cheio', embora reconheça que as viagens são um desafio. "Há muita coisa diferente, umas que melhoram a dinâmica de trabalho, como o facto de fazermos as refeições juntos e outras que condicionam, como as viagens e a distância para as famílias", comentou o treinador do Fontinhas, em declarações ao Bancada, onde fez questão de deixar uma palavra de agradecimento para quem cria as condições no clube "para que nada falte" ao plantel.
"Da parte do clube temos todo o apoio e disponibilidade para que as condições de trabalho sejam ótimas", confirmou João Cortesão, certo de que se não fosse o futebol, "não tinha conhecido tanta gente boa, nos quatro cantos do mundo".
Alunos com treinos personalizado online desde a ilha
Os profissionais vão sendo polidos com o passar dos tempos e é nas adversidades que o caráter se revela. Diz o povo que 'ninguém nasce ensinado'. Por isso, é preciso recorrer a fórmulas, adaptações e, não raras vezes, ao desenrasque.
Para João Cortesão, agora na ilha Terceira, treinar o Fontinhas é um desafio "tremendo" mas requer adaptações. Uma delas, por exemplo, na forma de acompanhamento dos seus alunhos.
"Neste momento, estou a 99 por cento no futebol, uma vez que ainda mantenho alguns alunos online, de quem sou personal trainer há muito tempo", contou João Cortesão, que, aos 41 anos, leva já no currículo passagens pelas formações de Boavista, Rio Ave, Paços de Ferreira, entre outros emblemas.
A rotina de um treinador no Campeonato de Portugal é variada. No caso de João Cortesão, como está a treinar o Fontinhas, a dedicação é a bem dizer exclusiva às táticas, planos e estratégias dos açorianos. E desengane-se quem julga que João Cortesão e a sua equipa técnica 'só' têm de dar o treino e 'está feito'.
"Neste momento, longe de casa, acordo cedo, tomo o pequeno almoço e saio para o clube, onde mostramos alguns vídeos aos jogadores, antes da sessão matinal", explicou o treinador, referindo que depois há almoço de grupo.
"Almoçamos em equipa e voltamos a casa para preparar o treino da tarde. Entretanto aproveitamos algum tempo livre para as nossas tarefas pessoais e voltamos ao clube. Jantamos em equipa e regressamos a casa".
Por entre tantos afazeres há, logicamente, tempo para 'matar a saudade'. "Uma videochamada ajuda a matar as saudades e estamos prontos para descansar", explicou o treinador que é adepto do lema de "viver cada dia com vontade", como António Variações cantou.
Até porque, como se sabe, no futebol as coisas mudam muito rapidamente. "No início da minha carreira já havia trabalhado no futebol sénior, primeiro como adjunto e depois também como treinador principal. Tanto esta, como a época anterior, mostraram que tudo acontece a um nível superior nos domínios tático, técnico, físico e psicológico", detalhou, falando sobre a "pressão" dos resultados.
"A pressão dos resultados é maior, mas por outro lado temos mais condições para desenvolver o nosso trabalho", admitiu o técnico, nesta entrevista ao Jogo do Povo, falando do "orgulho" que sente em treinar um clube como o Fontinhas, dos Açores.
"Treinar o Fontinhas no Campeonato de Portugal é o meu grande momento", confessou João Cortesão, realçando que o Campeonato de Portugal, pelo modelo competitivo que tem, é "difícil" para todas as equipas.
"É um campeonato muito difícil, tanto pelo formato da competição, como pela heterogeneidade dos plantéis e dos estilos de jogo", observou o treinador do emblema da ilha Terceira, que joga no Campo Municipal Dr. Durval Monteiro, e que tem uma paixão "pelo lado estratégico do jogo".
"Adoro competir, fascina-me o lado estratégico do jogo, bem como o planeamento e a operacionalização das minhas ideias e a sua articulação com o plantel", revelou João Cortesão, em declarações ao Jogo do Povo, no Bancada.
"Não sabia como contar aos pais que o carro desapareceu durante o treino"
A vitória está para o futebol como um alimento insubstituível. Mas muitas delas começam a ser trilhadas na forma como o balneário se relaciona entre si.
A adrenalina da competição é carregada todos os dias, mas, ao mesmo tempo, há espaço para brincadeiras, momentos mais ou menos engraçados. João Cortesão tem alguns, um dos quais não esquece. Aconteceu no Candal, quando treinava o emblema de Vila Nova de Gaia.
"Recordo-me de no CD Candal terem escondido o carro a um dos mais jovens do plantel. Durante o treino alguém veio ao balneário pegar nas chaves para levar o carro para a garagem, junto ao autocarro do clube", revelou, deixando detalhes.
"No fim do treino foi apreciar a aflição do jogador, sem saber o que fazer ou como dizer aos pais que o carro tinha desaparecido", disse Cortesão, sem mencionar a 'vitima' desta 'partida'.
César Brito nas Antas naquele FC Porto-Benfica
Pode haver vitória inesquecível ou derrota dolorosa. Há momentos marcantes pela positiva, outros pela negativa, na finta ou o toque de classe, no corte milagroso, sem esquecer a mestria do treinador que lá do banco, ouvindo ou não as bancadas, resolve a partida, ou estraga tudo. Futebol é isto e mais alguma coisa. Esse mais alguma coisa é o essencial, o amor, a paixão e a recordação.
Porque só se é do futebol quando se sente o futebol, quando se gosta do futebol. No futebol não há nins. Ou se gosta, ou não se gosta.
No caso de João Cortesão, o futebol é algo que faz parte da sua vida há muitos anos. Há momentos que não esquece como o dia em que César Brito, de camisola vermelha vestida, foi às Antas ajudar o Benfica a bater o FC Porto.
João Cortesão estava lá com o irmão. E há imagens que ficam para sempre gravadas - pelo que são, pelo representam, mas também por quem se tem ao lado e por quem leva ao futebol pela primeira vez.
"O meu irmão. Fomos ver um FC Porto contra o Benfica e não me esqueço do César Brito ter feito os dois golos do jogo", recorda João Cortesão sobre aquela tarde de 1991 quando César Brito, primeiro de cabeça a passe de Vítor Paneira, e depois com assistência de Valdo, ajudou as águias a voarem pelos céus da Invicta.
É para cultivar essas e outras memórias do futebol nas gerações do futuro que João Cortesão trabalha todos os dias. Hoje, na ilha Terceira, com o Atlântico sempre a espreitar em Praia da Vitória. Porque, afinal, é de vitórias que se fazem as glórias. E de viver. Porque como Variações cantou, "e a vida é sempre uma curiosidade| que me desperta com a idade| interessa-me o que está para vir| a vida em mim é sempre uma certeza| que nasce da minha riqueza| do meu prazer em descobrir".