Portugal
Chegada vibrante dos 'ilustres' de Madrid animou país convulso há 100 anos
2021-12-17 22:10:00
Memórias portuguesas após primeiro encontro internacional realizado há 100 anos

A seleção portuguesa de futebol vivenciou uma receção apoteótica no regresso ao país em 21 de dezembro de 1921, três dias após perder em Madrid com a Espanha, por 3-1, no seu primeiro encontro internacional, há 100 anos.

Descritos como tendo um estilo técnico e tático desatualizado face às ‘estrelas’ bem mais experientes da ‘roja’, expresso nos golos de Manuel Meana, aos seis minutos, e Paulino Alcântara, aos 10 e 66, os lusos são creditados por uma reta final pujante, com Alberto Augusto, apelidado de ‘Batatinha’, a bater o lendário Ricardo Zamora de penálti, aos 75.

Se a comitiva partira da estação de comboios de Santa Apolónia receosa de um pesado desaire diante da vigente vice-campeã nos Jogos Olímpicos Antuérpia1920, a dignidade com que se bateu e testou limites para defender as cores nacionais no Estádio Martínez Campos despertou no povo uma exaltação quase sem precedentes à volta do desporto.

Mal o árbitro belga Barrette Cazelle deu por terminado o desafio, houve um banquete de homenagem aos pupilos de um comité liderado por Carlos Vilar, com discursos de Raul Nunes, secretário da então União Portuguesa de Futebol, e do embaixador luso em Madrid, Vasco Quevedo, que convivera no recinto com o rei de Espanha Afonso XIII.

Três dias depois, e numa fase em que as ligações aéreas entre as capitais ibéricas eram inexistentes, o inevitável regresso por via ferroviária da seleção nacional chamou até Santa Apolónia milhares de pessoas, que começaram a vislumbrar no desporto-rei um escape emocional para os momentos conturbados da nação após a I Guerra Mundial.

A própria I República, castigada com uma grave crise política, económica e social ao fim de apenas uma década, seria recetiva à obtenção de feitos de alcance internacional que valorizassem o nome de Portugal, cujo ego coletivo estava cada vez mais desgastado.

Indiferente às revoltas anárquicas na década de 1920, o futebol teve autonomia na sua popularização desde a introdução por influência britânica no final do século XIX, ainda durante o período monárquico, começando passo a passo a conquistar a alma do povo.

As rivalidades entre clubes iam crescendo e aos jogos acorria público em massa, que precisou de esperar pela estreia da seleção das ‘quinas’ para assistir à conversão dos campeonatos regionais numa prova de dimensão nacional comum em outros países.

O primeiro ‘onze’ de Portugal não teve Artur José Pereira (Belenenses), considerado à época o melhor jogador luso, mas revestiu-se de celebridades aos olhos da imprensa, como o ‘capitão’ e médio Cândido de Oliveira, que saiu do Benfica para ajudar a criar o Casa Pia em 1920, ostentando influência, visão e omnipresença na evolução do jogo.

Jogador, treinador, dirigente e jornalista, o homem que dá nome à atual Supertaça foi um dos fundadores do jornal desportivo ‘A Bola’ e distinguiu-se na luta democrática, ao ser agente secreto em Portugal para Inglaterra e dos aliados, antes de ser detido pela PIDE e deportado para Cabo Verde, onde esteve preso no campo de concentração do Tarrafal.

Na primeira versão da equipa das ‘quinas’ jogava outro fundador de ‘A Bola’, o avançado António Ribeiro dos Reis (Benfica), pioneiro a assumir as funções de selecionador único (1925-1926 e 1934) e também o primeiro juiz a integrar o Comité de Arbitragem da FIFA.

Quase dois meses antes de alinhar em Madrid, o defesa Jorge Vieira (Sporting) tornou-se o primeiro luso a arbitrar um jogo internacional, com a Espanha a estrear-se em território interno com uma ‘vingança’ sobre a então campeã olímpica Bélgica, por 2-0, em Bilbau.

No meio-campo, pontificava o benfiquista Vítor Gonçalves, pai de Vasco Gonçalves, um dos militares na revolução do 25 de Abril, que chegou a primeiro-ministro dos II, III, IV e V Governos Provisórios, de 1974 a 1975, no Processo Revolucionário Em Curso (PREC).

Quatro anos depois, em junho de 1925, o centrocampista João Francisco Maia (Sporting) iria marcar o golo da primeira vitória de Portugal (1-0), frente à Itália, ocorrida no antigo Stadium de Lisboa, mais conhecido como Estádio do Lumiar, na altura ‘casa’ dos ‘leões’.

Já o quinteto ofensivo continha José Maria Gralha (Casa Pia), que, com 16 anos, nove meses e cinco dias, ainda é o mais novo de sempre a atuar com as ‘quinas’ ao peito, enquanto Alberto Augusto (Benfica), levado em ombros na chegada a Lisboa, alinhou ao lado do irmão Artur Augusto (FC Porto), o único representante de emblemas nortenhos.

A escolha de Alberto Augusto para marcar o penálti em Madrid partiu de Cândido de Oliveira, que, com 25 anos, cumpriu aí a única internacionalização por Portugal, cujo comando técnico viria a assumir em três momentos (1926-1929, 1935-1945 e 1952).

Na primeira delas, conduziu a formação das ‘quinas’ à estreia em grandes competições, culminada nos quartos de final do torneio olímpico de Amesterdão1928, já com as tradicionais camisolas vermelhas no lugar das cores ‘alvinegras’ adotadas na estreia.

Esse sucesso demoraria mais de três décadas a ser superado, graças ao terceiro lugar obtido pela geração do ‘rei’ Eusébio na estreia em Mundiais, em 1966, em Inglaterra, secundado pela chegada até às ‘meias’ no debute em Europeus, em 1984, em França.

Ao trazerem outras ambições e talento, as gerações mais recentes contribuíram para 11 presenças seguidas de Portugal em fases finais de provas internacionais desde 2000, abrilhantadas pela conquista do Euro2016, numa final frente à anfitriã França (1-0, após prolongamento), em Paris, 12 anos após o troféu perdido para a Grécia (1-0), em pleno Estádio da Luz, quando o futebol já se tinha convertido numa autêntica paixão lusitana.

O ‘fantasma’ helénico diluiu em 2019, quando os lusos triunfaram na edição inaugural da Liga das Nações, ao baterem em casa os Países Baixos (1-0), no Estádio do Dragão, no Porto, para registar a segunda mais bela página do centenário da seleção das ‘quinas’.​​​​​​​