Opinião
Samba do desperdício
2018-06-09 14:00:00

Nos jogos da primeira fase, coloco Philippe Coutinho e Paulinho no meio, com Willian e Neymar nas alas, para desbravar defesas? Ou será demasiado ousado e desrespeitoso para Suiça, Costa Rica e Sérvia?

E nos jogos a eliminar: opto por Fernandinho, para garantir mais solidez, empurro Coutinho para a direita e abdico de Willian? E Renato Augusto, titular ao lado de Paulinho no apuramento e meio lesionado neste fim de época, passa a suplente de vez?

Dada a ausência de Daniel Alves, escolho Danilo ou Fagner? Ou, em vez dos dois, jogo com o versátil Marquinhos, abrindo espaço definitivamente para Thiago Silva compor uma dupla de centrais mais experiente com Miranda?

Tite, como Löw, Lopetegui, Sampaoli, Deschamps, Martínez ou Santos, tem as suas dúvidas – boas e naturais – antes de iniciar o Mundial.

Mas, algo distingue o selecionador do Brasil, a seleção do Brasil e o futebol do Brasil dos outros: a quantidade de supostos convocados - mais: de supostos titulares – que ficaram pelo caminho no ciclo de quatro anos entre um Mundial e outro.

É verdade que a Alemanha de Löw tem o caso de Götze, que depois de marcar o golo do título em 2014, aos 21 anos, falha agora 2018, na plenitude dos seus 25, e a seleção portuguesa abdicou de Nani, que ainda no Euro-2016 era um indiscutível. E que Sané, Morata, Icardi, Martial, Nainggolan e outros também não fazem parte das contas dos técnicos por motivos táticos mais ou menos surpreendentes.

Mas, Tite não chamou quatro dos cinco jogadores que após o fracasso de 2014 a imprensa brasileira acreditou que fossem a base da recuperação do prestígio canarinho. Em vez de se estar hoje a falar de Marquinhos, Renato Augusto ou Coutinho, todos então a quilómetros de distância da seleção, previa-se naquele tempo que o selecionador brasileiro estivesse às vésperas do mundial russo a montar um puzzle ofensivo com Pato, Oscar, Lucas Moura e Ganso ao lado do inevitável Neymar. Uma capa da revista Placar titulava mesmo “De Pato a Ganso”, a propósito da renovação.       

No entanto, Pato, 28 anos, e Oscar, 26, engordam a conta bancária na China na mesma proporção em que definha o seu estatuto no futebol internacional.

Lucas Moura, 26, perdeu espaço no Paris Saint-Germain – ironicamente por culpa do amigo Neymar – e ainda busca ser opção no Tottenham.

Ganso, 28, não é apenas um fracasso do Sevilha mas já um caso crónico de inadaptação ao futebol do século XXI.

O problema não é novo: já em 2014, seria de esperar que Robinho (na altura com 30), Kaká (com 32), Adriano Imperador (também 32) e mesmo Ronaldinho Gaúcho (34) repartissem todos, ou alguns deles, a liderança técnica da equipa e evitassem que todas as ansiedades brasileiras caíssem nas costas de Neymar, assim como caíram os joelhos ferozes do colombiano Zúñiga.

Jogadores que baixam drasticamente de forma ou se perdem no caminho não é incomum – falámos em Götze e Nani e podíamos falar de mais umas dezenas. E como o Brasil, por uma série de razões, produz mais futebolistas do que qualquer outro centro, é natural que, como se diz por aqui, “a fila ande” mais depressa. E mais implacável.

Mas, mesmo assim Robinho, Kaká, Adriano, Ronaldinho, Pato, Oscar, Lucas e Ganso, só num ciclo de um mundial e meio ou dois mundiais, é desperdício a mais até para uma seleção tecnicamente excedentária. O mesmo desperdício que se revela em tantas outras áreas de um país que sofre do flagelo da fome como poucos apesar de ser fértil como nenhum outro; o mesmo desperdício que permite que, mesmo roubando-se tanto dinheiro ao longo de tantos anos, ainda haja tanto potencial de riqueza no Brasil.

Concedamos que Kaká tem o álibi das lesões sucessivas que lhe toldaram o arranque, a força e a velocidade, as características que fizeram dele, em 2007, o melhor do mundo. E que Lucas ainda vai a tempo de se tornar um ala relevante no contexto do futebol europeu e mundial.

Mas, os outros foram-se perdendo mais por desleixo do que por outro motivo qualquer. Um desleixo que não é exclusivo dos talentos brasileiros mas que é muito mais comum no gigante sul-americano do que noutro lugar: uma vez multimilionários e com alguns sucessos individuais ou coletivos na carreira, perdem o ânimo, a vontade, o brio. Como se ganhar dinheiro, para escapar do tal flagelo da fome que eventualmente terá pairado nas suas infâncias, fosse o seu principal, às vezes único, propósito.

É um fenómeno cultural brasileiro que merece atenção.

Entretanto, mesmo com tanto desperdício, feliz de um treinador, como Tite, que ainda pode hesitar entre jogadores da estirpe de Thiago Silva, Marquinhos, Coutinho ou Willian.

João Almeida Moreira é um jornalista português radicado em São Paulo e escreve no Bancada ao segundo sábado de cada mês.