Opinião
Ronaldo e Bale iniciam o fogo cruzado no Real Madrid, já com uma baixa: Zidane
2018-06-02 14:00:00

Os anos pares, e este é um deles, caracterizam-se pela celebração do Europeu, do Mundial e dos misteriosos planos de Cristiano Ronaldo em relação ao Real Madrid. A sua críptica mensagem depois de ganhar a Liga dos Campeões - nem tardou cinco minutos a referir-se à sua relação com o clube no passado - teve efeito de uma bomba atómica. Destruiu com um golpe o festejo madridista e converteu em notícia universal o descontentamento do jogador português.

O comentário de Ronaldo teve um efeito contagioso: imediatamente depois, Gareth Bale, o primeiro jogador de 100 milhões de euros da história do futebol, utilizou o seu golo prodigioso na final da Champions para atacar Zinedine Zidane, o técnico que tinha conseguido o título pelo terceiro ano consecutivo, e ameaçar com a sua própria saída do Real Madrid caso não tenha garantida a titularidade. O alvoroço foi de tal magnitude que o êxito foi enterrado pelos caprichos dos craques, cada um deles disposto a privilegiar a sua agenda pessoal em vez do espírito coletivo.

O foco da imprensa centrou-se em Ronaldo. Por muito que tente, Bale é, ainda assim, uma figura lateral no panorama madridista. Desde a sua chegada a Madrid, no verão de 2009, Ronaldo tem sido o centro da gravidade absoluto da equipa. Não há memória de nada semelhante desde os tempos de Alfredo Di Stéfano e desde então passaram 60 anos. As suas inoportunas declarações em Kiev apenas deixaram uma dúvida: se eram motivadas por uma birra infantil - Cristiano não marcou na final, ao contrário de Bale e Benzema - ou por uma rotura nas relação com o presidente Florentino Pérez. Ou seja, pelo pedido urbi et orbi de uma transferência para outro clube.

Não é preciso ser Freud para observar a natureza narcisista de Ronaldo. As suas manifestações intempestivas confirmaram a sua vertente vaidosa, mas isso nunca impediu de pensar que o seu peso na história do Real Madrid é quase inigualável. Ou Di Stéfano, ou Ronaldo. Todos os outros, e isso inclui Puskas, Gento, Pirri, Amancio, Butragueño, Hierro, Raúl, Casillas, Figo, Zidane e Sergio Ramos, ficam muito distantes do legado do avançado português. A partir desta perspetiva, Cristiano sente-se amparado pela sua formidável contribuição para o êxito e prestígio do clube, com o qual mantém uma peculiar relação desde há nove anos: parece que vai sair a cada época, mas acaba por ficar. A questão essencial encontra-se no dinheiro, claro.

Ronaldo tem 33 anos, mas acabou de dizer que tem uma idade biológica de 23, um motivo de otimismo que resultaria como piada não fosse a máquina goleadora que é. Sem ele, o Real Madrid apenas se converte numa equipa com menos apetite e com bastantes menos recursos ofensivos. A influência de Ronaldo é esmagadora. Os adeptos sabem-no e também o sabe o presidente, mas acima de tudo sabe-o o próprio jogador. Essa capacidade de influência no destino da equipa dispara a sua vaidade, mas também aumenta os seus méritos. Falamos de um jogador que ganhou quatro vezes a Bola de Ouro e é, com muita diferença, o máximo goleador da história do Real Madrid. Isso não se paga com dinheiro, mas sim com muitíssimo dinheiro.

É muito provável que Ronaldo mantenha contacto com as poucas equipas que podem assegurar a sua contratação. A sua mãe, figura chave no trajeto e na personalidade do jogador português, manifestou a sua gratidão a França, onde disse que o seu filho recebe um tratamento requintado. São declarações que fazem parte da estratégia montada por Ronaldo e pelos seus conselheiros. Outra coisa é o objetivo dessa estratégia: melhor o seu contrato no Real Madrid e superar o de Messi no FC Barcelona? Receber do Real Madrid o dinheiro que lhe permita pagar a sua dívida milionária com o fisco espanhol? Impulsionar uma transferência para o Paris Saint-Germain ou para a Liga Inglesa?

Nenhuma destas variáveis é novidade. Aparecem periodicamente, geralmente a cada dois anos, quando o interesse do futebol se dirige para o Europeu e o Mundial. Isso significa uma sequência constante de notícias e especulações, território no qual Ronaldo se move como ninguém, mais ainda quando Portugal se encontra no mesmo grupo que a Espanha. “Falarei em breve”, disse durante a explosiva declaração em Kiev. Ronaldo, que tem visível um lado teatral, desfruta como ninguém destas situações. Sabe manter em suspenso o clube, os adeptos, a imprensa e esse novo fenómeno dos nossos tempos: as redes sociais.

O madridismo sabe que o caso Ronaldo levará à especulação durante todo o Mundial e quiçá mais além. Será um verão longo, mas com um cenário imprevisível. Zidane não estará à frente da equipa. Sem mais experiência do que duas temporadas no Real Madrid B, filial que milita na terceira categoria espanhola, Zidane, sucedeu a Benítez em janeiro de 2016. Neste breve período, conquistou três Champions, uma Liga Espanhola, dois Mundiais de clubes, duas Supertaças Europeias e uma Supertaça de Espanha.

A este impressionante palmarés futebolístico juntou o seu exemplar comportamento e uma habilidade incomparável de gerir os egos, muitos deles monumentais, do plantel. Três temporadas com Zidane serviram para que o Real Madrid fechasse muitas das feridas que deixou abertas o violento e divisório mandato de José Mourinho entre 2010 e 2013.

A decisão de Zidane ficou conhecida quatro dias depois da final de Kiev e das declarações de Ronaldo e Bale. Enquanto que o conflito de Ronaldo está relacionado com a direção do clube, as queixas de Bale foram dirigidas a Zidane. Aproveitou os seus golos para criticar o treinador. Foi um ato de egoísmo supremo, mais feio do que o de Ronaldo.

Bale sabe que é um dos jogadores prediletos do presidente, que estava disposto a despedir Zidane se o Real Madrid não ganhasse a Champions. O triunfo colocou o treinador numa situação de vantagem, mas com numerosas rachas ao seu redor: o caso Ronaldo, a veterania da Benzema, Modric e Sergio Ramos, a crescente desconfiança que percebia do presidente e o desgaste natural num clube que tende para a autofagia. As lamentáveis declarações de Bale foram o culminar de tudo. Zidane foi embora. De facto, o primeiro treinador que não é despedido por Florentino Pérez.

Santiago Segurola, jornalista e ensaísta espanhol, escreve no Bancada ao primeiro sábado de cada mês.