Opinião
O “The Best” e o melhor do mundo
2018-09-26 14:00:00
Manuel Fernandes Silva é jornalista na RTP e escreve no Bancada às quartas-feiras

A eternidade é uma conquista rara, que apenas os génios asseguram de forma mais ou menos natural. Cristiano Ronaldo e Lionel Messi já conseguiram há muito tempo esse toque de infinito, mas nesta altura parece importante lembrar que ambos continuam em atividade e vão tentar, inevitavelmente, reclamar o lugar que já foi tantas vezes deles na última década: o de melhor jogador do planeta. O prémio de Luka Modric pode não ser um fim de ciclo, mas apenas um intervalo.

Os méritos do médio internacional croata são imensos e torna-se difícil rebater a escolha da FIFA quando vemos as melhores imagens que marcam a temporada do vencedor do prémio “The Best”. Modric foi o coração e o cérebro da Croácia finalista do Mundial e teve um papel fundamental na temporada do Real Madrid. Fundamental, mas secundário, porque o protagonista foi sempre Cristiano Ronaldo, o homem dos golos.

A tendência imediata de comparação entre os dois favoritos é a estatística: Ronaldo marcou 54 golos (no Real Madrid e por Portugal), Modric apontou apenas cinco na época passada (juntando clube e seleção croata). Olhar a justiça da atribuição do prémio desta forma é um exercício muito discutível, porque Modric não é um goleador, da mesma forma que Ronaldo já deixou de ser há algum tempo um construtor de jogo e de oportunidades de golo, para se tornar no mais implacável finalizador do futebol mundial.

A escolha de Modric está longe de ser unânime, mas fica a anos-luz da quase inexplicável eleição de Fabio Cannavaro em 2006, que serviu “apenas” para premiar a Itália, campeã do mundo nesse ano. Desta vez os “eleitores” deixaram esse critério de fora e afastaram da decisão final Griezmann ou Mbappé, dois franceses que poderiam muito bem figurar na etapa final do “The Best”.

A polémica instala-se quase todos os anos justamente devido às oscilações de critério de quem vota: quase sempre estes prémios individuais parecem dependentes das conquistas coletivas (e uma coisa não está desgarrada da outra), mas nesta temporada a fórmula de desempate foi individual e bastante subjetiva: a inegável qualidade do jogo de Modric derrotou a conquista coletiva da seleção francesa no Mundial da Rússia e os golos de Ronaldo, Salah e Messi (que numa época “menos exuberante” marcou por 52 vezes).

Não demoraram a chegar os elogios dos companheiros de equipa do Real Madrid, alguns acompanhados de sublinhados louvores ao final do “monopólio” dos avançados, como se o golo pudesse deixar algum dia de ser a alma do futebol. Só que a história explica que foi o diálogo com a baliza adversária que tornou eternos muitos dos melhores jogadores de todos os tempos.

Di Stéfano, Puskás, Pelé, Eusébio ou Ronaldo “Fenómeno” foram goleadores assombrosos, mas Maradona e Cruyff também fecharam a carreira com números extraordinários (o argentino marcou quase 500 golos e o holandês chegou perto dos 550). Este ano, o “colégio eleitoral” da FIFA parece ter preferido menorizar a importância do golo, mas não é possível contrariar a natureza de um desporto que valoriza quase sempre mais quem consegue levantar as bancadas. Os prémios para o melhor guarda-redes, melhor defesa e melhor médio ajudaram a mitigar essa tendência quase inultrapassável, premiando quem se destaca (como é o caso de Modric) noutras zonas do campo.

Na última década, apenas Iniesta e Xavi ameaçaram o domínio de Messi e Ronaldo, mas nunca venceram o prémio que agora a FIFA entregou a Modric. O croata é um enorme jogador, mas até surge um patamar abaixo dos dois médios de ouro que jogaram pelo Barcelona e pela equipa nacional de Espanha.

Luka Modric é o novo “The Best”, mas dificilmente alguém dirá com total convicção que é ele o melhor jogador do mundo. Pelo menos enquanto Cristiano Ronaldo e Lionel Messi continuarem a fazer deslizar poesia pelos relvados.

 

P.S. - Os dois melhores jogadores do planeta não estiveram na Gala “The Best” e o organismo máximo do futebol mundial não terá gostado. Citada pela “Marca”, uma fonte da FIFA terá dito que “Messi e Ronaldo desprestigiaram o futebol”.

É verdade que Luka Modric merecia receber os aplausos dos dois “extraterrestres” na primeira fila do Royal Festival Hall, mas nem essa falha pode justificar uma crítica tão exagerada e quase absurda.

Dizer que Ronaldo e Messi desprestigiaram o futebol por terem faltado a uma festa (na antevéspera de um encontro, no caso do jogador português) é quase tão absurdo como dizer que Meryl Streep desprestigia o cinema por faltar a uma cerimónia dos Óscares. Ronaldo e Messi são as caras do futebol mundial, são responsáveis diretos pelo crescimento da popularidade do desporto-rei em todas as latitudes e aquilo que fizeram, fazem e vão continuar a fazer em campo será sempre muito mais decisivo para o futebol do que qualquer gala ou cerimónia.