Opinião
Drible driblado
2018-02-10 14:00:00

O Brasil é o país de Pelé, que além de inventar tabelinhas mitológicas com Coutinho ainda usava as pernas dos adversários para tabelar e driblar. 

E de Garrincha, o anjo das pernas tortas, que chamava todos os rivais de João, porque tanto se lhe dava que fossem um desconhecido perna de pau do Bangu ou o mais endeusado central de uma seleção europeia: cedo ou tarde, acabaria fintado, talvez humilhado. 

No Brasil, até um médio-defensivo, como Clodoaldo, teve o desplante de numa final de Mundial, a de 70, fazer uma pedalada e driblar ainda antes do meio-campo quatro italianos, em plena era do catenaccio, para dar início ao talvez mais icónico de todos golos coletivos da história. 

Uma fotografia de Denilson, rodeado de quatro turcos a tentarem sem sucesso tomar-lhe a bola na meia-final do Mundial de 2002, tornou-se famosa.  

Ronaldinho Gaúcho tinha um repertório de dribles riquíssimo. Romário só tinha um, a vírgula, mas resultava sempre. Ronaldo Fenómeno começou por usar a força para, depois de a perder, passar a concentrar-se na qualidade de execução. Robinho ainda hoje é chamado de rei da pedalada. Se o deixassem, a cada jogo Neymar fintaria o Louvre, a Torre Eiffel e o Cavani. 

No país em que o quase anónimo Kerlon inventou a finta da foca – levar a bola na cabeça até ser travado, normalmente, em falta – há ainda especialistas em chaleiras, chapéus, dribles da vaca, canetas e elásticos, como Rivellino. 

E o maior driblador do Brasil e do mundo, porém, não fez mais de 13 jogos como profissional do São Paulo: chama-se Falcão e a curta experiência no futebol de campo foi apenas um parentesis de uma carreira excecional no futebol de salão. 

Vem esta introdução a propósito de um levantamento da empresa Footstats publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em Novembro do ano passado que prova que a tradição brasileira do drible está a perder-se: segundo o estudo, apenas 3,8 fintas foram tentadas por jogo na Série A do Brasileirão de 2017, 2,6 delas (70%) com êxito. Em 2016, ano em que começou a contabilidade, os números já eram baixos mas não tanto – 4,2 tentados, 3,1 certos (72,2%). 

Como não há dados do passado, o jornal pediu a protagonistas da época para “fazer as contas”: “Esse número de dribles por jogo de hoje eu tentava por ataque antigamente”, diz o habilidoso Edu, que fez 584 jogos pelo Santos, de 1966 a 1978 e participou nos mundiais de 66 (com 16 anos), 70 (campeão) e 74. 

Zé Sérgio, ponta driblador do São Paulo do início dos anos 80, lembra que no seu tempo, se não tentasse um drible a cada jogada, era vaiado. Rivellino acrescenta que hoje, pelo contrário, quem tenta um chapéu ou uma caneta, é acusado de desrespeitar o rival. “O futebol usa muito computador mas computador não dribla nem faz golo”, diz entretanto o antigo “goleirão” e treinador Emerson Leão. 

Mas os números, os tais números, parecem dar razão às equipas que privilegiam o passe como principal fundamento do ataque em vez do tal rasgo individual capaz de derrubar uma marcação individual ou de torcer um esquema tático, outrora a imagem de marca dos jogadores brasileiros. Basta notar que o clube que mais acertou dribles por jogo - 3,3 – foi o Atlético Goianiense, que acabou isoladíssimo na lanterna vermelha. E que Bruno Henrique, o ousado ala do Santos que mais “um contra um” tentou de todos os participantes no Brasileirão, não foi sequer cogitado para a seleção brasileira do organizadíssimo Tite, apesar dos 16 golos ao longo do ano. 

Num momento em que as mais recentes estatísticas revelam que no mundo, incluindo nos Estados Unidos, nunca se comeu tão poucos hamburgueres, e que até em Cuba se fuma cada vez menos, talvez faça sentido que por todo o globo, até no Brasil, haja um refluxo do drible. Filosofando, tal como uma dentada num Big Mac ou uma baforada num Cohiba são hábitos eventualmente saborosos mas medicamente não recomendados, os pensadores do futebol de hoje sentem que, na era da zona, do passe e da pressão, o drible é arriscado para a saúde das suas equipas. 

Ou então, os dribladores estão a tornar-se uma daquelas espécies em extinção, como os oleiros, artistas do barro, ou os tapeceiros, artistas dos tecidos. O tempo o dirá. Até lá, nada como ver imagens antigas de todos os génios da finta, brasileiros ou outros.

João Almeida Moreira é um jornalista português radicado em São Paulo e escreve no Bancada ao segundo sábado de cada mês.