Opinião
Cristiano Ronaldo ou o exuberante minimalista
2018-04-07 16:10:00

É tempo de felicidade para Cristiano Ronaldo, como é habitual nesta altura da temporada. Ele afina-se como ninguém quando chegam as semanas decisivas, as que decidem os grandes títulos e marcam o palmarés dos jogadores. Duas explosivas atuacões frente ao París Saint Germain e à Juve devolveram-lhe toda a notoriedade que perdeu nos últimos meses de 2017. Ganhou a Bola de Ouro, mas o Real Madrid defraudava na Liga e Cristiano atravessava uma insólita seca goleadora. Falou-se de declínio e de conflito com o clube, que não desejava pagar a Cristiano o mesmo dinheiro de Messi, 40 milhões de euros anuais. O debate alcançou uma magnitude desconhecida até agora. De algumas tribunas jornalísticas catalogou-se Cristiano Ronaldo como um problema para o Real Madrid. O debate ficou, no entanto, totalmente sufocado. O dianteiro português recuperou a tempo todo o seu esplendor: alveja as balizas, a sua atividade é constante e a sua ambicão contagia toda a equipa. O Real Madrid, que há dois meses estava a 21 pontos do Barça na Liga espanhola, tornou-se no principal favorito para conquistar a Liga dos Campeões. A razão é simples: Cristiano Ronaldo voltou a entrar em ebulição.

Nunca há dificuldade em justificar a importância de Cristiano Ronaldo no Real Madrid. As estatísticas estão sempre do seu lado. Marcou pelo menos un golo em cada uma das últimas 10 partidas da Liga de Campeões. É o máximo goleador da prova (104 golos com o Real Madrid e 16 com o Manchester United) e ganhou três das últimas quatro edicões da Liga dos Campeões. Nem sequer ficou um rasto da sua supreendente debilidade na primeira volta da temporada: apenas marcou um golo nos seus primeiros 61 remates. Nas últimas semanas deu a volta a todos os números. Cristiano Ronaldo apontou 18 golos nos últimos 61 remates à baliza.

Sob qualquer perspetiva, os seus números são assombrantes. É um martelo estatístico, mesmo agora, com 33 anos, uma idade que convida a pensar na retirada dos jogadores. As estatísticas mostram-no tão ativo como nos seus melhores anos, mas a sua hierarquia explica-se melhor pela qualidade dos seus golos. Em Turim, marcou um golo tão extraordinário que, em termos de dificuldade, beleza e precisão, discute com a célebre virada de Zinedine Zidane na final de Glasgow 2002, frente ao Bayer Leverkusen. Não há suficientes adjetivos para elogiar a sua "chilena", nem tão pouco o seu primeiro golo num remate com a parte exterior do pé direito que surpreendeu Buffon, que sensibilizou os defesas italianos e os 40 mil  adeptos da Juve.

É, aliás, conveniente precisar a natureza dos golos. Cristiano Ronaldo marcou-os a um toque, no primeiro aproveitando a velocidade e a astúcia para adiantar-se à defesa italiana. Do segundo já se disse tudo: é um alarde de potência, agilidade e precisão. O melhor do atleta e do futebolista reuniram-se numa "chilena" memorável. Os dois golos mostram um jogador num perfeito estado físico, um rematador implacável e o melhor avançado centro do Mundo.

Em Turim, viu-se mais do que nunca o percurso de Cristiano Ronaldo como futebolista. O extremo potente e habilidoso do Sporting ampliou o seu raio de acão a toda a frente de ataque no Manchester United e ampliou mais o cenário no Real Madrid. Houve três ou quatro anos de Ronaldo em que ameaçava o golo desde qualquer zona do campo. Essa zona de influência reduziu-se nos dois últimos anos. Transformou-se num voraz avançado centro, menos influente no jogo, mas insuperável como rematador.

O seu percurso como futebolista mostra o aproveitamento máximo do seu tremendo potencial, expresso numa ambicão sem limites e num inteligência para adaptar-se às necessidades de cada posição. Nos seus primeiros anos, acusava-se Cristiano Ronaldo de barroco. Gostava tanto da bola que pretendía monopolizá-la. Era um regateador impertinente. A sua rapidíssima progressão permitiu-lhe converter-se num goleador de magnitude histórica, sem abandonar o seu fascínio pela bola. A Cristiano não lhe agradava estar na área. Queria desfrutar da bola. Isso era mais visível quando arrancava de trás, preferencialmente desde o lado esquerdo. Não era fácil pensar neste clínico Cristiano Ronaldo, transformado num minimalista do remate. É tão crucial como sempre no Real Madrid, mas o seu exercício de reconversão fez-nos descobrir um futebolista fascinante. Tantos anos depois, Cristiano Ronaldo derivou para um dianteiro insólito: o exuberante minimalista.

Santiago Segurola, jornalista e ensaísta espanhol, escreve no Bancada ao primeiro sábado de cada mês.