Reza a lenda que o estoiro de Adriano contra a Grécia, em 2005, ecoou em todos os cantos da região de Leipzig, na Alemanha. É uma hipérbole sugestiva do momento em que a perna canhota do ‘interista’ enxotou a bola com uma “patada atómica” digna de Rivellino.
Não esquecendo um golo sensacional de Ronaldinho Gaúcho na meia-final de 1999 contra a Arábia Saudita, aquele remate portentoso de Adriano pela seleção brasileira é uma das imagens mais imediatas que me ocorre quando o assunto é a Taça das Confederações. Que o digam Kyrgiakos, o pobre defesa que não segurou o artilheiro da Vila Cruzeiro, e Nikopolidis, o guarda-redes dos campeões europeus que ficou com a baliza em chamas.
Recordar algumas proezas do Brasil na Taça das Confederações desde os anos noventa não deixa de ser um exercício agradável. A questão é que a partir deste fim de semana os olhos estão inevitavelmente mais focados no presente. E Cristiano Ronaldo, estreante na prova, magnetiza praticamente toda a atenção.
O nível de desempenho de CR7 nesta ponta final da época é demolidor. Dezoito golos nos últimos onze jogos efetuados é uma estatística que ilustra muita coisa, concretamente por que motivo o Real Madrid não escorregou na corrida com o Barcelona e também por que razão sufocou a Juventus na segunda parte em Cardiff. Zidane racionou bem a sua utilização, sacrificando, com a concordância do jogador, dois meses de jogos fora no campeonato espanhol. Tal medida trouxe reflexos esperados na diminuição da contabilidade pessoal de golos na liga, mas, alargando a análise, foi essencial para que Cristiano chegasse à fase das decisões numa condição suprema.
Com esta conjuntura, o capitão vê, no Rússia 2017, uma janela para sublinhar a sua singularidade. Para ficar eternizado no álbum de memórias da Taça das Confederações, vai recorrer às ferramentas habituais: o pé esquerdo que esmagou a baliza do Sevilla, o pé direito que partiu o coração da Velha Senhora no País de Gales e a cabeça que atemorizou o Valencia no Mestalla e no Bernabéu.
Não se iludam: o Rússia 2017 é um torneio que a FPF está a levar muito a sério, tentando fazer peito à concorrência e assumir, com legitimidade, uma posição de protagonismo crescente na cena internacional na sequência de Saint-Denis e do enaltecimento das seleções jovens.
Percebe-se, por isso, que Fernando Santos leve para a TdC o grosso da tropa de elite campeã em Saint-Denis, entretanto inovada com os desconcertantes Bernardo e Gelson, ou com o dinamismo de Nélson Semedo na faixa direita. Mas também houve retoques noutros setores, como é o caso do meio-campo com a exclusão de Renato Sanches, congelado em Munique, e do cerebral João Mário (lesionado), promovendo-se, assim, a entrada de Pizzi, figura-chave na época dominante do Benfica em território nacional. Saiu também Éder, herói na final de França, e entrou o ‘rossonero’ André Silva, já um dos elementos mais consolidados no ataque português, vestindo a pele de Benzema na sociedade com Cristiano, quase a papel químico da fórmula cozinhada por Zidane em Valdebebas.
O eixo da defesa ainda vai à inspeção. Ricardo Carvalho, um dos melhores centrais da história, já não é opção, e Pepe, talvez o jogador mais eficiente de Portugal no Euro 2016, perdeu terreno em Madrid.
Numa ótica mais abrangente, Santos quer aperfeiçoar a cultura de vitória da equipa em competições de formato rápido, esgrimindo argumentos com seleções diferentes, que coloquem dificuldades diferentes. O Chile tem peças de classe mundial e laivos bielsistas. Já a Nova Zelândia, predisposta para correr mais do que os outros, apela com todos os ‘hakas’ para que Wood (tinha 18 anos no Mundial da África do Sul) seja agraciado com o mesmo faro goleador que o destacou no Leeds United. O México, batido nestas andanças, continuará a exaltar, agora com Juan Carlos Osorio no comando, a tradicional flexibilidade de sistemas, apresentando uma linha atacante de respeito, com Chicharito, Vela e Raúl, apesar da ausência de Corona. E no ‘El Tri’ ainda há Guardado, Herrera e Giovani. Já a Austrália, vai à luta com Rogic, craque do Celtic, enquanto os Camarões contam com Aboubakar, determinante na CAN.
Em suma, é uma prova de prestígio inequívoco, mas cuja mais-valia reside no facto de permitir a Portugal testar o seu nível, de uma forma relativamente exigente em cenários que se assemelham àqueles que poderá encontrar novamente na Rússia, já a doer no Mundial de 2018. A lógica de aprimoramento coletivo e de dar quilometragem à equipa, tentando que os jogadores, de forma articulada, decifrem problemas dentro do campo, faz todo o sentido na leitura de Santos.
Apesar disso, é exatamente neste ponto que nos deparamos com a visão caleidoscópica da Taça das Confederações, na medida em que, por exemplo, o selecionador alemão olha para a mesma competição por um ângulo completamente distinto do de FS, embora não menos sensato.
‘Jogi’ Löw optou declaradamente por não sobrecarregar jogadores nucleares que serão essenciais daqui a um ano, no Mundial. Participar em três torneios em três anos (Mundial 14, Euro 16 e Confederações 17) seria esticar a corda antes do Mundial 18, a competição que realmente importa àquela que, possivelmente, é a seleção mais forte da atualidade. Por este motivo, para além dos lesionados Neuer, Höwedes, Gündogan e Weigl, Löw, que também não tem Sané, deu repouso a Hummels, Boateng, Khedira, Kroos, Schürrle, Özil, Müller e Reus, atacante do Dortmund que está orientado para fazer uma pré-época em condições e estar pronto para o Mundial da Rússia, depois de ter falhado a presença nos grandes eventos de 2014 e de 2016.
Esta razia intencional chegou inclusivamente a causar algum desconforto em Alexei Sorokin, chefe do comité organizador do Campeonato do Mundo, que gostaria de ver os melhores intérpretes integrados já na TdC, o principal aperitivo para 2018.
Compreensivelmente, ‘Jogi’ não lhe fez a vontade, não tanto porque o selecionador veja a prova como um empecilho, mas porque, vendo ele o copo meio cheio, é uma circunstância que abre espaço a jogadores recém-chegados que também vão ter de começar a fazer o seu caminho. E isso é algo que será aproveitado no próximo ano tendo em vista a afinação da Alemanha.
Com esta política de visão a médio/longo prazo, patrocinada pela federação alemã, Löw injeta uma grande dose de sangue fresco na Nationalmannschaft, nomeadamente Stindl e Younes, mas colocando também Draxler em plano de maior evidência, a liderar a equipa. Campeão do mundo no Brasil e um dos poucos reforços bem conseguidos pelo PSG na época anterior, é ele que ostentará a braçadeira de capitão na TdC. Goretzka, dinamizador do Schalke, também integra a lista de Löw. Seria figura de cartaz no Europeu sub-21 na Polónia – onde vão marcar presença Gnabry e Meyer -, mas pode muito bem ter um papel relevante em 2018, pelo que se justifica que contabilize mais minutos na Seleção-A para já ter mais poder de afirmação quando for mais requisitado.
Num patamar substancialmente inferior, a Rússia, que tem sido um pouco esquecida nas análises da imprensa em virtude de não discutir jogos oficiais de qualificação, recebe a TdC em clima de desconfiança, havendo diversas sondagens que indicam o receio da população que a seleção da casa não passe sequer a fase de grupos.
Outra vez rodando o tambor do caleidoscópio, o prisma de Cherchesov diverge dos seus homólogos Santos e Löw, pelo que a prioridade do selecionador russo é a de remendar o mais possível para não fazer má figura.
As debilidades são severas. É garantido que não haverá Dzagoev e Dzyuba, lesionados, enquanto o lateral-direito Mário Fernandes, que também daria um jeito como central, está igualmente indisponível. Ignashevich e os Berezutski estão oficiosamente retirados. Por opção, Cherchesov não chamou Shatov, pouco rodado no Zenit. Já Mamaev e Kokorin, dois talentos de quem se esperava mais nesta fase, não têm mostrado a compenetração certa e não “calçam”.
Ao contrário de Capello e de Slutsky, adeptos do 4-2-3-1, Cherchesov é partidário do 3-5-2, fomentando o avanço ponderado de Smolnikov na direita e de Zhirkov ou Kombarov na esquerda. As reticências provêm sobretudo da estabilidade dos três centrais, pois os presumíveis titulares no eixo – Dzhikia, Vasin e Kudryashov – podem revelar alguma falta de capacidade para este nível de exigência. Para contrabalançar a situação mais tremida na zona defensiva, a baliza fica protegida por aquele que será o mais cotado elemento da seleção russa atual: o capitão, Akinfeev.
Não tem sido um período fácil para a renovação da seleção. Miranchuk perdeu-se no Lokomotiv, Shirokov retirou-se depois do Euro, Tarasov não é um médio-defensivo com calibre para fazer esquecer Denisov e, para agravar todo o cenário da zona média, Zobnin, motor do Spartak campeão sob a direção de Carrera (ex-adjunto de Conte), lesionou-se para cinco meses. Glushakov e Golovin vão ter a responsabilidade de fazer piscinas a alimentar o ataque, onde Smolov, sempre profícuo no Krasnodar, deve ser titular, apesar de não ter a fineza de um Kerzhakov. Ao seu lado, como alternativa a Bukharov, Poloz é uma hipótese fiável, lembrando os bons jogos que tem feito pelo Rostov, onde evoluiu muito com o treino de Berdyev e num desenho tático similar ao de Cherchesov. Tem movimentos inteligentes na frente, pressing forte na zona de construção do adversário e bastante rapidez a disparar no contra-ataque, pormenor importante tendo em conta que os russos podem tender a recuar no campo.
É difícil crer que a Rússia tenha capacidade para se aguentar contra equipas do nível da Alemanha, de Portugal, ou até do México ou do Chile. Vão chegar-se à frente Draxler, Cristiano, Chicharito e Alexis em busca da glória. Como Adriano.
Luís Catarino é jornalista e comentador da Sport TV e escreve no Bancada às sextas-feiras.