Entrevista a Ricardo Nunes, capitão do Varzim da Liga 3
Num mundo onde o desencontro se faz tantas vezes arte, falemos de encontros, de vidas que se cruzam, de esperança e de alegria por voltar, com rugas, alguns cabelos brancos e muita experiência, a ser menino, novamente, como em criança, quando todos os sonhos eram certezas, quando o futebol não se esgotava em 90 minutos.
Voltemos ao tempo onde pouco importava se havia sol ou chuva. Se estava frio ou calor. Havia naquele tempo, sim e sempre, muita vontade de jogar, de ser como os ídolos, de marcar golos de bola parada ou corrida, de fazer aquele remate fantástico. Era o tempo em que todos queriam ser o craque da equipa. Era o tempo em que todos queriam ir para a frente sem olhar para trás. E à baliza quem vai? Isso é que já era um ‘problema’, para alguns. Para outros, era uma oportunidade.
Pode o guarda-redes ser a estrela? Pode. Pode o guarda-redes ser o exemplo e a lição que se leva na ‘pasta dos deveres’? Pode. Pode o guarda-redes ser mais do que o que defende a baliza? Pode. Pode a alegria pairar sobre quem fica naquela posição solitária à chuva e ao sol, muitas vezes de boné na cabeça mas a rezar para não levar com uma ‘chapelada’? Pode. Tanto pode, que não faltam exemplos de sucesso fora e dentro. Por isso, senhoras e senhores, meninas e meninos, eis Ricardo Jorge Novo Nunes.
Futebol na Póvoa para ser feliz
Aos 41 anos, a vida já lhe pregou algumas partidas, mas o “poveirinho”, como assume ser, tem mãos firmes para travar qualquer investida. E é por aí que começamos porque esse é o encontro mais bonito: a vida.
E no jogo da vida, o guarda-redes Ricardo Nunes vai saboreando todos os dias com a máxima intensidade, até porque sabe que “curado no cancro é uma palavra que não existe”.
“Mas quando me disseram que estava tratado e que podia regressar às balizas foi um sentimento de alívio e bastante felicidade”, assumiu Ricardo Nunes, em entrevista ao Jogo do Povo, no Bancada.
O guarda-redes do Varzim confessa que a “baliza sempre foi e será um sítio” de alegria. “É onde me sinto muito bem, é um sítio que me dá boas e bonitas sensações. Para mim a baliza é sinónimo de alegria”, explica Ricardo Nunes que, para lá dos 40, continua a jogar com a alegria de um menino da Póvoa de Varzim.
Mas desengane-se quem julga que Ricardo Nunes sempre foi guarda-redes. Nada disso. Antes, a missão era precisamente fazer golos até que o pai de Bruno Alves viu em Ricardo Nunes um excelente guardião para o futuro ‘Ajax da Póvoa’.
“Andou a queimar tempo e não percebeu no campo que o adversário tinha feito golo”
Fruto de ser traquina, o pai de Ricardo Nunes castigava-o e, a dado momento, jogou no Fradelos, onde muitos jovens dos ‘lobos do mar’ jogavam. Ricardo Nunes sabia que não podia ir aos treinos todos e por isso a carreira chegou a estar tremida.
Mas Ricardo Nunes manteve sempre a confiança e, já na baliza, começou a construir aquilo que foi, e ainda é, uma carreira com episódios marcantes para contar; ainda que alguns deles “o melhor seja nem dizer o nome do jogador”.
“Eu não vou meter nomes, pois a pessoa pode ficar melindrada. Estávamos a ter um jogo competitivo e já ia na segunda parte quando a equipa adversária marca o 1-0.
O jogador em causa entra logo a seguir e faz o golo do empate e ainda tínhamos uns 20 minutos para conseguir ganhar o jogo”, detalha Ricardo Nunes, recordando que o Varzim precisava de vencer.
“Nós precisávamos da vitória, pois jogávamos em nossa casa. Esse jogador sempre que levava um toque ia ao chão e pedia assistência. Até que numa das vezes cheguei junto dele e disse-lhe ‘anda, levanta-te que estamos a perder tempo’. E ele piscava-me o olho e eu não percebia o que me estava a tentar dizer com aquilo”, conta agora Ricardo Nunes.
A surpresa do jogador em causa foi total no final do jogo quando percebeu que o Varzim tinha empatado. “Acabou o jogo e empatamos 1-1. Logicamente, quando chegamos ao balneário estávamos todos cabisbaixos pois tínhamos que ganhar e esse jogador vira-se para um colega e diz ‘porquê que estamos todos tristes se ganhamos 1-0 e fui eu que marquei o golo?'”.
Perante a admiração total, tiveram de refrescar a memória ao jogador. “Ele não se tinha apercebido no campo do golo do adversário e andava a queimar tempo porque pensava que estávamos a ganhar”.
Essa é uma de muitas situações mais ou menos insólitas que Ricardo Nunes tem no currículo de jogador, numa carreira que começou na Póvoa de Varzim, prosseguiu na Académica, no FC Porto, no Vitória, em Setúbal, em Leiria e no Chaves antes de voltar à casa de partida.
O Ajax da Póvoa
O Varzim já andou na alta roda do futebol nacional e viveu tempos de glória. O mar poveiro já deixou ‘pescar’ muitos craques do futebol português, alguns ainda em atividade. A praia poveira é lar para miúdos e graúdos, onde o verão continua a ser longo e o sol aquece por entre a claridade que entorna pelo crepúsculo.
Só que no futebol, o Varzim não tem a praia que quer ou que os adeptos desejam. A jogar na Liga 3, a turma poveira, o ‘Ajax da Póvoa’, como em tempos ficaram conhecidos, espera continuar a formar jogadores como Bruno Alves, Ricardo Nunes ou Luís Neto, entre muitos outros.
Ao mesmo tempo, Ricardo Nunes espera que desportivamente a equipa também possa voltar aos patamares de outrora, embora reconheça que a Liga 3 é uma prova “competitiva” e que “valoriza jogadores”.
“A Liga 3 valoriza jogadores”
Por isso, diz ter uma “opinião muito positiva” da Liga 3. “É uma liga muito equilibrada e competitiva com jogadores e treinadores com muito valor e qualidade para atingirem outros patamares”, avaliou o guarda-redes do emblema poveiro, que dentro ou fora de campo gosta sempre de ter o futebol por perto.
“Gosto de ver jogos, principalmente entre grandes em Portugal, a Champions League e as grandes equipas europeias quando jogam entre si”, confirma o guardião de 41 anos que não esquece as primeiras vezes que foi à bola pela mão do “avô materno”.
“No futebol de rua eu e os meus amigos era futebol de manhã à noite. Lembro-me dos gritos dos meus pais a chamarem-me para ir jantar, porque estava na hora de ir para casa, mas também me recordo dos donos das casas em que a bola lhes batia nos vidros e nas portas. Eles vinham à rua para nos mandarem embora”, recorda Ricardo Nunes, que não esquece também o “cheirinho da relva que é sempre uma coisa que fica de quando comecei a ser profissional”.
Os jogos na superior vestido a rigor por ordem do avô
E no dia da estreia, à memória vieram todos aqueles que ajudaram Ricardo Nunes a ser guarda-redes, em especial o avô. “O meu avô materno sempre que o Varzim jogava em casa levava-me vestido a rigor pela mão para a superior com o estádio sempre completamente cheio”, lembra o jogador varzinista que fala com orgulho do clube e da terra que é a sua.
“Sou poveirinho e amo a minha cidade e acho que essa é uma característica muito própria em todos os poveiros. Somos muito bairristas, temos muito orgulho em nascer aqui, amamos a nossa cidade e defendemos esta terra com unhas e dentes”, confirma Ricardo Nunes, certo de que o Varzim merece trepar na hierarquia das competições em Portugal.
“Esta é uma camisola histórica e sentimos o peso. O Varzim é um clube com uma mística muito própria e tem uma massa associativa muito fervorosa e presente”, elogia o capitão poveiro, em declarações ao Jogo do Povo, confirmando que “é especial jogar futebol ainda para mais no clube do coração”.
Quais os segredos para jogar para lá dos 40?
Ricardo Nunes é uma das estrelas da Liga 3 e, para lá dos 40, continua a mostrar capacidades para a função de defender as redes. Ao Bancada, o guardião, que chegou a estar por várias vezes pré-convocado para a Seleção Nacional, explica os segredos para se manter em atividade.
“É tratar bem o meu corpo e a minha mente para estar em condições de ajudar os meus colegas a conseguir atingir os objetivos do clube”, disse Ricardo Nunes, falando da tranquilidade com que vive e da alimentação.
Mas o futebol só por si não faz estrelas. Para tal, são precisos muitos apoios, de anónimos aos mais próximos. Por isso, Ricardo Nunes não esquece quem nunca o deixou sozinho entre os postes.
“É preciso muito apoio principalmente da família e eu tenho a sorte de a minha ter estado sempre presente, a meu lado nos momentos mais difíceis. Nem tudo é um mar de rosas nesta profissão”, avisou Ricardo Nunes que continuará a defender o Varzim, um clube que é um verdadeiro ‘coração’ da Póvoa e que faz palpitar de emoção e paixão tantos varzinistas e poveiros, os verdadeiros ‘lobos do mar’ de uma alcateia marítima que muitos jogadores tem dado ao futebol.