Se para Salvador Dalí "o bigode era a parte mais séria" da sua personalidade, para Manuel Matias o bigode foi sempre algo que o caracterizou, a par do futebol que tinha nos pés e na cabeça. Agora como treinador, aos 59 anos, mantém a imagem de marca e continua pronto a dar 'grandes bigodes' aos adversários no xadrez tático. O Jogo do Povo encontrou-o em Valadares, Vila Nova de Gaia, e conversou com o treinador da equipa que milita na Série B do Campeonato de Portugal.
'Com este em vez daquele dávamos cinco em vez de quatro'
De fato e gravata, de fato de treino ou até de calções ou umas calças jeans, o treinador pode estar vestido no banco de mil e uma formas que acabará sempre por ficar com o 'casaco' da culpa quando a coisa correr mal. Porque o adepto - e está no ADN de todos - é um insatisfeito por natureza. E se a equipa ganha por 4-0, 'não fez mais que a obrigação' ou 'com este em vez daquele dávamos cinco em vez de quatro'.
A crítica no futebol é permanente, faz parte e poucas são as profissões onde a manta da paciência é tão curta. Matias conhece a lógica de funcionamento da coisa até porque "já são muitos anos disto", desde os tempos em que foi aos treinos do FC Porto com o "amigo de escola Tobé", filho de António Morais, adjunto e homem de confiança de José Maria Pedroto.
"Eu tinha 9 anos, era muito pequenino e recordo-me de ir com o meu amigo de escola Tobé, filho do saudoso António Morais, adjunto do Mestre José Maria Pedroto. Lembro-me de ir aos treinos do FC Porto, algures pela Constituição", contou Manuel Matias.
No olhar oceânico da juventude do Porto a Matosinhos, cercado de água e a tentar ver mundo mais além, Matias encontrou sempre a terra firme, sem se deixar captuar por 'tubarões'.
Matias é assim. Não verga aos ditames do politicamente correto no futebol e, persistente que é, com a voz carregada de sotaque bem portuense, até porque é um "de gema", segue em frente, pautando a lógica da bola por aquilo que viveu, aprendeu e estudou sobre o desporto-rei tanto no balneário como jogador, como agora, enquanto treinador.
Inevitavelmente, a entrevista ao treinador do Valadares Gaia tinha passar precisamente pelo Campeonato de Portugal e a Série B, onde o emblema de Gaia tenta fazer pela vida para assegurar a manutenção e, quem sabe, chegar lá acima.
"É uma série muito competitiva, em que temos de pensar jogo a jogo porque as equipas são de boa qualidade e a luta é sempre intensa", resumiu Manuel Matias, certo de que se trabalha "cada vez melhor" nestas divisões.
"A qualidade dos jogadores cresce cada vez mais e isso é bom para a competição. Devemos realçar obviamente que a visibilidade aumenta também", vincou o técnico do clube gaiense, nesta entrevista ao Jogo do Povo, no Bancada, ele que se não fosse jogador e treinador teria sido muito provavelmente um gestor de marketing.
Mas as voltas da vida foram outras e Matias fez carreira como jogador e fez parte do onze de luxo do FC Porto campeão em 1995/96. Ao falar desse FC Porto vem João Pinto, vem Baía, vem Aloísio, mas vem também Matias, que recordou os ensinamentos de Sir Bobby Robson.
"Um gentleman com o qual trabalhei e conheci no futebol. Demonstrou-me que se pode ser um gentleman dentro e fora do futebol. Ele tinha esse dom. Deixou-me essa forma bem vincada de ser e estar no futebol e na vida."
"Parecia o Pai Natal"
Além das amizades e de formas de ser e estar, Manuel Matias, que é um fã incondicional de um bom cabrito, tripas e francesinha, admite que tem colecionado alguns episódios caricatos e que têm gerado boa disposição nos grupos de trabalho.
Uma dessas passagens aconteceu ainda enquanto era futebolista. "Tinha um colega que quando entrava no autocarro, aquilo para ele era sagrado, começava logo a dormir mal a camioneta começava a andar, fosse na ida para os jogos ou no regresso, ou idas para estágios. Ele ficava como uma pedra", explicou Manuel Matias.
Com o colega a dormir, o plantel acabava por 'aprontar' algumas. "O pessoal começou a pregar-lhe algumas partidas. Um certo dia, pegamos em espuma da barba e ficou com a cabeça cheia de espuma. Quando ele acordou parecia o Pai Natal", recordou Manuel Matias, nesta entrevista ao Jogo do Povo, entre sorrisos pelo meio das palavras.
"Quando somos jogadores somos egoístas por natureza"
E porque há tendências discursivas ou expressões que, por vezes, podem ser mais dolorosas que lesões físicas nas pernas de um jogador, Manuel Matias contou ao Bancada aquilo que só soube quando passou a ser treinador e jamais imaginou quando era um jogador de futebol.
"Quando somos jogadores somos egoístas por natureza", confessou Manuel Matias, assumindo que, com o avanço dos ponteiros do relógio e da idade, há coisas que vão ficando mais claras.
"Só nos lembramos de nós mesmos e esquecemos do outro, do ser humano que é pai, tem família que é o caso dos treinadores", vincou Manuel Matias, certo de que os treinadores têm "obrigações" e, enquanto jogador, algumas coisas nem tinha presente na cabeça.
"Aprendi enquanto treinador que o treinador é o elo mais fraco", contou o treinador. E porque assumir erros eleva a dimensão dos homens, Matias aproveita a oportunidade para reconhecer quando foi 'pecador'.
"Provavelmente, fiz um juízo de valor não correto a quem me treinou a quem estava a dar o melhor à instituição", admitiu Manuel Matias, certo de que, quando o jogador é jogador, por vezes nem dá conta de certas situações.
"Quando somos líderes tentamos ser mais corretos. O líder é por aceitação", concluiu Manuel Matias, um dos mais reputados treinadores portugueses, que continuará a pisar terra firme mesmo que cercado pelo horizonte oceânico num mar de paixões pela bola.