Futebol. Uma arte, um modo de vida, uma paixão. Tanta coisa foi, é e pode ser. Criado na rua, refinado na mente e apaixonado no coração, chamam-lhe o desporto-rei, que arrasta multidões, que cultiva sonhos e dá luz a caminhos. Nele, os números não marcam golos, mas não deixam de nos pôr a pensar.
É por ele que, tantas vezes, o sangue tem um trajeto mais veloz nas veias, movido pelo nervosismo, arrastado pela intensidade do pensamento no pré e no pós jogo mas também no durante.
E não há sequer uma teoria que não possa cair, por mais robusta que seja, quando a bola, muitas vezes, contra todas as previsões, ‘beija’ as redes no momento supremo, com glória, euforia e êxtase.
Um facilitador do processo
Por mais conceitos, momentos, equilíbrios ou estratégias, no futebol emerge sempre uma lógica racional: uma bola e duas balizas. O vencedor é aquele que marca mais golos do que o adversário. Tão simples, até básico de perceber, mas complicado de aplicar, tantas vezes. Por isso, o futebol e a alta competição têm um algodão: rendimento.
A receita é simples, aplicá-la é que dá trabalho. Por isso, há muito que os clubes procuram os facilitadores do sucesso. Entre treinadores e jogadores, existem figuras lendárias que os museus fazem por repousar e perpetuar na memória, mostrando-os como exemplos.
Há lugares também para presidentes e para dirigentes quando, pelo seu trabalho, dedicação, exemplo e compromisso, ajudam a bola a dar em golo.
O remate final pode até nem ser deles, mas a jogada tem muito do seu ‘ADN’, da sua dedicação. O futebol sabe que a gratidão aos diretores será sempre medida por aquilo que dão, não raras vezes, fazendo com que o longe fique perto, o impossível mais possível.
No léxico do futebol passou a entrar há muitos anos a figura do diretor-desportivo, o homem que liga as partes ao todo, como se quer num clube. O diretor-desportivo, integrado na estrutura, é o facilitador, a cola que une e que não deixa romper a coesão.
Rémulo Marques, diretor-desportivo da Camacha, já não tem a idade de menino mas quando olha o futebol, continua a sonhar com ele como da primeira vez que entrou num estádio pela mão do avô, naquele tempo em que fazia por conhecer “os clubes e as suas histórias”, as suas “dinâmicas” e modos de ser e estar no desporto, com “cultura desportiva”. Essa cultura é a base para aquilo que foi, é e sonha ser no mundo da bola.
No tempo em que o futebol aos domingos tinha homilia sagrada pelos clubes de uma cidade Invicta com maior ou menor mediatismo. Foi com o “ídolo” que entrou nas Antas para ver um “FC Porto-Estoril” e também foi a mesma mão que o levou “ao Bessa”, “ao Progresso”, ao “Padroense”, ao “Pasteleira” e até ao “Ramaldense”, em estádios carregados de uma pronúncia do Norte, mas também do futebol.
Contudo, nenhum estádio o marcou tanto como a primeira vez que foi a Vidal Pinheiro. Porque no pensamento está sempre algo ‘tão velhinho e sempre novo’, como o hino salgueirista inscreve. E é nesta mistura de tanto futebol que foi ficando a ideia de ser alguém para ajudar.
“Foi em Vidal Pinheiro”, recorda, falando do território sagrado em Paranhos para a ‘alma salgueirista’.
“Lembro-me até hoje da emoção do jogo e da emoção de entrar num estádio. Marcou-me muito o que o Salgueiros representa, para mim, e para a minha família também”, reconheceu Rémulo Marques, realçando que o filho está quase a atingir a maioridade e também faz parte da família salgueirista.
A melhor infância do mundo era com uma bola no centro de uma roda de amigos
Aos 45 anos, Rémulo Marques continua a pensar a melhor infância do mundo que era, inevitavelmente, com uma bola no centro de uma roda de amigos, fosse a jogar ou em intermináveis (boas) conversas, como aquelas com que brindou o país da bola no tempo de covid-19 com a sua, e tão do futebol, ‘Quarentena da Bola’, que foi um relvado com bancadas intermináveis à escuta.
Mais experiente e conhecedor das realidades da vida e da bola, o dirigente continua a lutar para que o futebol seja um lugar melhor e recheado de sonhos, como aqueles que tinha quando a televisão lhe mostrou um Mundial que jamais esquece.
“Fiquei fascinado com tudo o que vi. Jogos, jogadores. Eu sabia os nomes todos”, admite Rémulo, voltando à primeira vez que entrou num estádio.
“Do jogo em Vidal Pinheiro ao Mundial de 82 nasceu a minha paixão pelo futebol”, confirmou Rémulo, em declarações ao Jogo do Povo, falando de um tempo em que, menino, não estava por dentro de várias máximas, dogmas e preconceitos que acompanham o futebol que hoje se conhece e do qual faz parte.
Aos 45 anos, é um dos mais destacados dirigentes do Campeonato de Portugal, com um currículo vasto por vários emblemas, alguns de topo na geografia do mapa do futebol português como Leixões e Boavista.
Experiente e presente, Rémulo contou ao Jogo do Povo como consegue gerir as emoções num jogo que pede que cada vez mais os seus protagonistas não se deixem levar pelas sensações.
“Eu sou uma pessoa emocional e nem sempre é fácil gerir a adrenalina do próprio jogo no banco. Acho que vivemos uma altura de total exagero. Acho que existiu e existe muito descontrolo nos bancos, mas que a forma que se encontrou para combater também não é a ideal, nem de perto nem de longe”, comentou Rémulo Marques, apontando a “árbitros inseguros” e “pouco preparados”.
"Os árbitros lidam mal com qualquer tipo de crítica, mesmo que seja construtiva, mesmo que seja educada. Há uma capa de defesa que metem"
Nesse sentido, o dirigente da Camacha fala dos observadores que ficam na bancada a ver os jogos dos árbitros e que, por vezes, “não percebem e não têm jogo de cintura” para entender as “emoções associadas a um jogo de futebol”.
“Quando se deixam de perceber as emoções associadas a um jogo de futebol, muita coisa está mal”, disse, concordando que os árbitros também “não estão ali para serem enxovalhados e insultados ou ameaçados”.
“Acho que tem que haver lugar para a emoção e para a contestação. Acho que eles [árbitros] não são imunes a críticas. Lidam mal com qualquer tipo de crítica, mesmo que seja construtiva, mesmo que seja educada. Há uma capa de defesa que metem.”
"Estar no banco não ter que ser só estar sentado a olhar e a rezar"
Do Campeonato de Portugal, Rémulo Marques diz que vê árbitros “pouco preparados”, com “pouco jogo de cintura”, com “pouco conhecimento do jogo”, com “pouco conhecimento das dinâmicas de um jogo de futebol”.
“Estar no banco não ter que ser só estar sentado a olhar e a rezar. Tem que se viver o jogo e respeitar todos os intervenientes. Quando se perde o respeito, perde-se tudo”, acrescentou o dirigente da Camacha, confessando que tenta o “equilíbrio”.
“Desde que comecei nestas lides já aprendi e evoluí bastante. Fico muito feliz quando encontro equipas de arbitragem com as quais posso construtivamente conversar seja antes do jogo ou no final”, salientou, apontando caminhos.
“É preciso haver mais formação e capacitação em relação ao que é lidar com a emoção do jogo. Uns fazem-no muito bem, outros muito mal e prejudicam-se como árbitros e prejudicam o jogo. É a minha opinião”, argumentou, certo de que, no futebol, “todos temos uma responsabilidade e temos de a saber assumir”.
“De 15 em 15 dias temos de tratar da logística, dos autocarros, dos hotéis, das permutas com clubes por causa de bolas, águas, coletes, cones e de tudo. E isso corre muito bem, há grande compreensão”
E a responsabilidade acarreta também desafios. Para a Camacha, de 15 em 15 dias, é tempo de fazer as malas e viajar para o continente. Trata-se de um desafio que obriga a organização a ter tudo previsto e mapeado.
Num clube onde se contam os euros, abunda a entrega e o “profissionalismo” que Rémulo Marques aproveita para elogiar.
“De 15 em 15 dias temos de tratar da logística, dos autocarros, dos hotéis, das permutas com clubes por causa de bolas, águas, coletes, cones e de tudo. E isso corre muito bem, há grande compreensão”, explicou o dirigente, falando de um clube “organizado” na ilha da Madeira.
“Eu sou muito rigoroso e gosto das coisas ao ponto seja nas horas das refeições dos atletas, seja o tipo de refeições, as horas de descanso dos atletas, o tempo de deslocação do hotel para o treino, do treino para o hotel, é tudo tratado ao detalhe como se estivessemos no profissional porque é a nossa maneira de trabalhar e não faz sentido de outra maneira”.
"Fazem isso quando vão à Madeira. Nós fazemos de 15 em 15 dias"
As dificuldades são frequentes e Rémulo Marques aponta, por exemplo, que a comitiva chega quase sempre ao aeroporto Francisco Sá Carneiro “à uma da manhã” proveniente do aeroporto Cristiano Ronaldo, na Madeira.
“E depois temos que viajar de autocarro para um hotel nas proximidades do adversário, chegando muitas vezes aos hotéis às 3H ou 3h30 em dia de jogo oficial. Os adversários vão dizer que quando vão à Madeira até vão no próprio dia. Verdade. Muita gente opta. Mas fazem isso quando vão à Madeira. Nós fazemos de 15 em 15 dias”.
"Para levar o staff absolutamente essencial, temos de abdicar de dois jogadores. Vejo muita gente a queixar-se não passando por metade daquilo que uma equipa insular passa. Eu sou continental e senti isso na pele e percebi em primeira mão como é difícil ser uma equipa insular"
Por outro lado, Rémulo Marques salientou ainda que “os apoios do Governo Regional e da Federação Portuguesa de Futebol são bons, mas insuficientes”.
“Obrigam a que a gente, nos jogos fora, faça uma convocatória de 18 atletas para levar a equipa técnica, dirigente, responsáveis do departamento médico. Para levar o staff absolutamente essencial, temos de abdicar de dois jogadores, que nunca é agradável, positivo e nunca é bom. É uma luta constante que na Camacha se tem enfrentado com muito rigor, exigência, pragmatismo e sem queixas, sem queixas. Vejo muita gente a queixar-se não passando por metade daquilo que uma equipa insular passa. Eu sou continental e senti isso na pele e percebi em primeira mão como é difícil ser uma equipa insular”, relatou, dizendo que “muita gente toma decisões sentada em gabinetes”.
“Sem nunca passar pela experiência e sem nunca ouvir quem está na experiência. Era importante ouvir mais as pessoas que estão no terreno e que sentem na pele as dificuldades para levar a bom porto dentro da verdade desportiva as obrigações perante o clube e a competição”, assegura o dirigente da Camacha que, antes desta experiência, estava na II Liga no Leixões.
"Toda a gente já percebeu que o modelo competitivo do Campeonato de Portugal precisa de ser reavaliado. Acho que desde que se acabou com a III Divisão tem sido um constante remendar, um ano atrás de outro. Parece-me que o fim da III Divisão foi um claro erro"
“Eu não me entrego menos porque estou na Camacha ou porque estive no Fafe ou no Pasteleira. Eu sou assim. Comecei do Inatel até à Divisão de Honra da Associação de Futebol do Porto. Foram cinco anos incríveis. As coisas correram bem porque a minha equipa e que nós construímos se deu como se fosse o futebol profissional”, confirmou Rémulo Marques, em entrevista ao Jogo do Povo.
“Toda a gente já percebeu que o modelo competitivo do Campeonato de Portugal precisa de ser reavaliado. Acho que desde que se acabou com a III Divisão tem sido um constante remendar, um ano atrás de outro. Parece-me que o fim da III Divisão foi um claro erro. Eu, pelo menos, assim o entendo. A III Divisão tinha um propósito e o seu espaço nos clubes e na vida dos adeptos. O Campeonato de Portugal enquanto não havia Liga 3 ainda foi tendo alguma atenção, mas de uma época para a outra foi sofrendo remendos e alterações, ajustes. Nasceu torto e tarda em se endireitar”, salientou o dirigente da Camacha, falando de um campeonato onde, em cada divisão, muitas equipas descem e isso acarreta “instabilidade”.
“Chegamos ao Natal já com equipas completamente fora de uma luta por uma fase final e que começam a dispensar jogadores e a reajustar. Acontece na nossa Série. É só as pessoas estarem atentas. Isto é um modelo que não interessa a ninguém. Não interessa aos clubes, não dá sustentabilidades aos atletas, aos dirigentes, aos treinadores, e não dá sustentabilidade à competição”, acrescentou ainda Rémulo Marques.
“Há muito para fazer. Falta aos grupos de trabalho, reuniões, ouvir quem vive as realidades e acatar algumas ideias. Que os grupos de trabalho tenham jogadores, treinadores, presidentes, isso é que é um verdadeiro grupo de trabalho, não só quem tem cargos específicos. É ouvir e seguir. Ninguém fica diminuido com isso. A partir do momento em que há uma Liga 3, que tem sido um sucesso e tenho de dar os parabéns à Federação Portuguesa de Futebol, nem tudo é mau, parece-me que é uma aposta ganha, uma aposta fantástica, uma competição mais seguida, mais interesse que muitos jogos do que a Liga 2, o que não fica bem à Liga mas isso são outros quinhentos”, detalhou, falando do Campeonato de Portugal como “um parente pobre”.
“Passou a ser o parente pobre que é doente, que é manco ou o que lhe queiram chamar”, observou, falando de um Campeonato “muito representativo” no mapa do futebol.
“Tem clubes históricos, clubes que pretendem trilhar o seu caminho, clubes onde se trabalha muito bem, muitos clubes que são o berço e base de jogadores que vão chegar a patamares elevados, treinadores que vão chegar a patamares elevados e muitas vezes falta olhar para esta situação”, disse, insistindo que “o modelo competitivo é errado e ninguém tem dúvidas disso”.
“Não só o número de equipas que descem. Os dois primeiros ainda fazem uma poule contra outra Série e dos quatro sobem dois. Acho desde o princípio acho que foi criado de uma forma pouco ponderada. Se foi muito ponderada, facilmente se percebe que não está a resultar. É preciso fazer aqui alguma coisa diferente.”
A este propósito, Rémulo Marques deu o exemplo da Guarda Desportiva e do impacto que decisões de uma equipa condenada desde cedo à despromoção acabaram por ter na classificação.
“A três jornadas do fim a Guarda Desportiva não comparece ao jogo com o Machico porque já estava relegada e a viagem à Madeira era mais cara que a multa com que foi penalizada por não comparecer quando o Machico estava envolvido numa luta pela não-relegação com a Camacha, o Leça, o FC Alpendorada, entre outros. Fica tudo dito. Os regulamentos estão desajustados e algo deveria ser feito. Desce menos uma equipa mas o formato está, sinceramente, mau. Precisava de ser repensado.”
"No próprio dia eu tinha a aliança comigo. Tive medo de a perder"
No futebol como na vida, ser grande é algo que se alcança quando se permite sê-lo. Rémulo Marques tem bagagem no futebol suficiente para saber que ‘grandes feitos’ não ficam marcados apenas por tudo aquilo que se desenrola nos relvados. Por isso, há momentos gratificantes para mais tarde recordar.
Um desses momentos ocorreu depois de uma eliminatória da Taça de Portugal contra o Famalicão com direito a pedido de casamento por parte do capitão dos madeirenses. “Começou como uma brincadeira nas redes sociais”, recordou Rémulo, ao Jogo do Povo, explicando que apadrinhou o momento.
“No próprio dia eu tinha a aliança comigo. Foi uma responsabilidade e tive medo de a perder”, lembrou um momento em que “ganhou dimensão”.
Vivendo dos sonhos e para os sonhos, com uma bola sempre como prioridade, Rémulo Marques assume que 24 horas não lhe chegam para o tamanho dos projetos e ideias que tem nos clubes por onde tem passado.
“Não o digo porque fica bem dizer ou para me autopromover”, esclareceu o dirigente da Camacha, que se mostra preocupado em reunir condições para que todos se sintam integrados no processo organizacional.
“Todos é todos. Jogadores, treinadores, analistas, departamento médico, departamento de equipamentos, o pessoal do relvado, o pessoal afeto à logística, o pessoal afeto à questão de inscrições e burocracia”, contou o diretor-desportivo do emblema insular, certo de que é importante que toda a gente saiba “onde começa e onde acaba o seu papel”.
“Onde começa e acaba o seu contributo. Toda a gente saber onde é necessário, quando, como e a quem reporta. Essas coisas são importantes que fiquem sempre claras. E toda a gente sentir que o seu trabalho é importante para os resultados. A bola não entra por acaso. Para entrar mais vezes, o contributo de todos é fundamental e eu não abdico.”
Como tal, há expressões que vão para lá de uma simples ‘quarentena’ de cautela para eventualidades. “Prever, antever, antecipar, preparar, pensar e organizar”.
“O futebol é um meio dinâmico, competição é um meio dinâmico, como o desporto, que muda no espaço de microsegundos e temos de estar preparados para nos ajustar”. Fica o conselho do diretor da Camacha, que vai seguindo com o ‘bailinho da Madeira’ no Campeonato de Portugal, procurando 'descodificar' o futebol para ir do 'jogo pensado ao jogo jogado', como lançou as bases, em livro.