Muitas vezes, pelo mundo do futebol, já ouvimos a expressão “não interessa como começa, mas, sim, como acaba”. A história da bola redonda já nos mostrou alguns exemplos da veracidade desse ditado popular, mas talvez nunca ninguém o tenha feito como Sá Pinto está a ousar fazer esta temporada ao comando do histórico Standard Liège. A viagem épica do técnico português pela Liga belga de 2017/18 começa com um arranque atribulado e pelos últimos postos da tabela; a meio tem uma qualificação quase miraculosa para o apuramento de campeão; e, agora, surge um milagre ainda maior: o Standard, que muitos julgaram morto e acabado, é a melhor equipa da segunda fase da Jupiler Pro League e, acreditem ou não, entrou nas contas pelo título.
Esta história começou logo em setembro, embora seja necessário recordar que o histórico emblema belga já não conseguia a qualificação para a fase decisiva do campeonato há duas temporadas. Ou seja, nos últimos dois anos a temporada do Standard terminou a “jogar a feijões” por uma eventual vaga no playoff de acesso à Liga Europa. Mas em 2016/17 nem isso o Standard conseguiu, terminando a fase regular num desapontante 9.º posto e, depois, no 4.º posto do grupo A da segunda fase - junta os clubes da segunda metade da tabela e também alguns da segunda divisão, mas desta particularidade “sui generis” falaremos mais à frente.
Vamos então até 17 de setembro de 2017, quando o Standard Liège empatou 1-1 no terreno do AS Eupen, na 7.ª jornada da fase regular, somando o quinto jogo consecutivo sem vencer. Em sete jornadas apenas uma vitória para amostra e já três derrotas a contar. A equipa de Sá Pinto nem o top 10 da tabela conseguia ocupar. Os “Les Rouges” pareciam destinados a continuar à deriva até ao naufrágio final. Muitos já lhe estavam prestes a passar a certidão de óbito.
No entanto, o Standard foi conseguindo continuar a respirar, mesmo que muitas vezes com ajuda de respiração assistida. Aos poucos a equipa foi-se endireitando, ainda que as derrotas e empates teimassem em voltar. Um arranque atribulado de temporada que chegou a ver o Standard por vezes mais perto dos últimos lugares do que dos primeiros. Mas tudo estava para melhorar com a viragem de ano, já depois do técnico português ter sido notícia pelas capacidades teatrais.
O ano de 2018 começou a todo o gás para o Standard. A equipa perdeu o goleador Orlando Sá, mas viu regressar Carcela em grande forma. A isso juntaram-se os golos de Emond e Edmilson Júnior. Uma série de seis jogos sem perder colocou a formação da Valónia bem perto do top 6 e de se qualificar para a fase de apuramento de campeão. Mas ainda faltava a última jornada da fase regular e mais um capítulo épico desta aventura. Para o Standard era obrigatório vencer no terreno do KV Oostende e esperar que o Royal Antuérpia, de Bölöni, não vencesse no terreno do Anderlecht.
Foi a 11 de março de 2018 que o milagre de Sá Pinto se começou a desenhar. Ao intervalo Anderlecht e Antuérpia estavam empatados, mas pior estava o Standard que perdia já por 2-0. Bastaram 23 minutos para a turma de Liège reagir e dar a volta ao marcador no segundo tempo. Poucos minutos depois, o Anderlecht marcava e ajudava assim às contas do técnico português. Dois anos depois, o gigante adormecido voltava à disputa dos primeiros lugares do campeonato.
A Taça e uma série incrível
Tendo em conta a herança que recebeu, qualificar a equipa para o apuramento de campeão já seria um feito assinalável para Sá Pinto. Mas o técnico português, de 45 anos, não estava satisfeito e na semana seguinte garantiu a conquista da Taça belga. Depois de eliminar o todo-poderoso Club Brugge nas meias-finais, o Standard venceu o KRC Genk na final e carimbou logo aí o primeiro troféu da época, assim como o regresso automático às competições europeias.
O que poderiam exigir mais os adeptos de Liège? Pouco ou nada. Mas isto era só o início da epopeia. O arranque do playoff mostrou um Standard Liège muito forte. Mais forte que qualquer rival. No entanto, os 23 pontos de atraso para o líder Brugge com que terminou a primeira fase não ajudavam muito - mesmo tendo em conta que os pontos são divididos para a segunda fase e que essa diferença foi reduzida para 12. A verdade é que após sete jornadas a equipa de Sá Pinto já somou 16 pontos e tem o melhor registo entre as seis que lutam pelo título.
Até ao momento, o Standard sofreu apenas uma derrota e um empate, levando já cinco triunfos. O último aconteceu no domingo, com uma contundente goleada caseira frente ao Genk, por 5-0. Aliada ao triunfo do Anderlecht no terreno do Club Brugge, este resultado teve o condão de deixar os pupilos de Sá Pinto a apenas… 4 pontos da liderança. Do sexto lugar o St. Liège saltou rapidamente para terceiro e aquilo que parecia uma miragem - o título, que foge à equipa desde 2008/09 - tornou-se realidade. De forma quase miraculosa, admita-se.
Esta quinta-feira o técnico português tem um teste decisivo pela frente. Pelas 13H30 o Standard tem uma complicada deslocação ao terreno do Anderlecht, o segundo classificado e campeão em título. É certo que as fichas estão do lado da equipa de Bruxelas, mas resta lembrar que ainda há bem pouco tempo o Satndard alcançou um empate surpreendente a quatro golos no terreno do líder Brugge. Uma vitória coloca Sá Pinto automaticamente na vice-liderança e, talvez, até a um curto passo do título belga, pois no domingo, na penúltima jornada, há uma receção ao Club Brugge. A decisão da Liga belga está a ferro e fogo e o técnico ex-Sporting já provou que está pronto para tudo, até para o impossível.
Da segunda para a Europa, sem passar pela casa partida
A par deste já de si peculiar apuramento de campeão, decorre também na Bélgica o playoff de acesso à última vaga para a Liga Europa, num sistema ainda mais curioso. Esta fase “sui generis” permite mesmo que uma equipa do segundo escalão alcance o apuramento direto para a Liga Europa, mesmo sem ter estado no primeiro escalão - não, não estamos a falar do caso dessa equipa vencer a taça...
Passemos então a explicar: A Jupiler Pro League conta com 16 equipas e após 30 jornadas o último classificado é automaticamente relegado de divisão e os seis primeiros vão discutir a fase de campeão. As outras nove equipas que sobram juntam-se a três equipas vindas do segundo escalão – do segundo ao quarto posto - e vão discutir o playoff da Liga Europa, divididas em dois grupos de seis equipas. Isto acontece porque na Bélgica a designação é dada como Pro Liga A e Pro Liga B, ou seja, é como se fosse apenas uma divisão dividida em dois escalões.
O mais curioso é que o campeão do segundo escalão, que este ano foi o Cercle Brugge, sobe automaticamente e não entra nestas contas do playoff europeu. Dessa forma, OH Leuven, Lierse e o Beerschot Wilrijk juntaram-se às restantes equipas do primeiro escalão nesta luta. No final, os vencedores dos dois grupos disputam um primeiro playoff (meias-finais) e o vencedor vai disputar a última vaga europeia num playoff com o quarto qualificado do apuramento de campeão – o facto de o Standard ter vencido a Taça pode abrir mais uma vaga.
Ou seja, o 6.º classificado, que na teoria lutou pelo título, não vai à Europa, o 5.º pode também não ir e existe a possibilidade de ir uma equipa do segundo escalão, que nem sequer é a campeã. No mínimo curioso, embora matematicamente nenhuma das três equipas referidas tenha ainda essa possibilidade, pois no Grupo A o Zulte Waregem (9.º na fase regular) já garantiu a vaga para as meias-finais e no Grupo B o Beerschot Wilrijk siga no último posto, com apenas 4 pontos, muito distante do líder KSC Lokeren (13.º na primeira fase). Chamemos-lhe “lógica belga”…