Grande Futebol
Orgulho mexicano e o cumprir de um sonho com uma ovelha negra no Rebanho Sagrado
2018-12-13 17:55:00
É um Chivas em crise desportiva aquele que procura fazer história no Mundial de Clubes de 2018.

São poucos aqueles clubes que se podem vangloriar de serem, efetivamente, especiais. Diferentes. De terem uma identidade que os distinga. Muitos confundem mística com identidade. Com identidade são poucos. Com uma filosofia própria. Com uma marca distintiva. Poucos. Contam-se pelos dedos de uma mão, talvez. O Deportivo Guadalajara, mais conhecido por Chivas no Mundo do futebol é um deles. Defensor do patriotismo e orgulho mexicano, no Chivas só jogam jogadores nascidos no país. Esta temporada, quase como um sonho tornado realidade, o Chivas tem a missão de levar a mexicanidade até aos Emirados Árabes Unidos. Fá-lo, porém, com uma ovelha negra ou, pelo menos, assim diz a FIFA.

Foi no final dos anos 40 que o Deportivo Guadalajara ganhou a alcunha de Chivas ao entrar em campo com uma cabra pintada com as cores do clube. O que começou por ser uma brincadeira dos rivais, acabou por se tornar património do clube, e perante a filosofia definida praticamente desde a fundação do clube, deste apenas jogar com jogadores nascidos no país, o Chivas ganhou igualmente a alcunha de Rebanho Sagrado. Em 2018, porém, culpa de um erro administrativo ou de uma simples burocracia, o Rebanho Sagrado segue para a Arábia com uma ovelha negra: Alejandro Zendejas.

Nascido em Juárez, estado de Chihuahua, junto à fronteira com o estado norte americano do Novo México, bem colado a El Paso, há 20 anos, ainda que Alejandro Zendejas tenha nascido no México, a sua filiação à federação estado unidense resultou a que na ficha de inscrição do Chivas para o Mundial de Clubes, junto da FIFA, Zendejas surja com a nacionalidade estado unidense. Apesar de dupla nacionalidade, o facto de ter viajado cedo para os Estados Unidos - só regressou ao México em 2016 depois de alguns anos ao serviço do FC Dallas - e ter alinhado pela seleção sub-17 do país norte americano, fazem de Zendejas estado-unidense aos olhos da FIFA. Segundo um porta voz da organização, uma vez que Zendejas está afiliado à federação dos EUA e não à do México, para a FIFA, Zendejas é estado-unidense e para que seja considerado pela FIFA como mexicano tem de requerer a mudança de afiliação federativa.

Ainda que para o público neutral a questão pareça um pormenor insignificante e um mero erro administrativo ou pormenor burocrático, para o Chivas esta é uma afronta à história do clube e um beliscão à própria identidade do mesmo. Responsáveis do clube aprontaram-se a clarificar a nacionalidade mexicana de Zendejas, atribuindo o assunto a um erro da FIFA, mas foi grande a discussão e a polémica nas redes sociais e imprensa mexicana. Não faltaram títulos relacionados com a perda da identidade do Chivas, ou do terminar de uma tradição de décadas, quase como que a matar filosoficamente o histórico clube de Guadalajara. Uma polémica certamente desnecessária numa altura em que o clube alcança um momento histórico na sua vida: nunca o Chivas participou num Campeonato do Mundo de clubes.

O mais curioso de tudo? É que ao contrário de Zendejas, que até nasceu no México, o Chivas leva aos Emirados Árabes Unidos dois jogadores efetivamente nascidos nos Estados Unidos, mas inscritos como mexicanos, casos de Isaac Brizuela e de Miguel Ponce, filhos de pais mexicanos e por isso detentores de nacionalidade mexicana. Algo que nem sequer é coisa recente, tendo passado pelo clube rojiblanco nomes como Salvador Reyes Jr, filho da lenda do clube e do futebol mexicano Chava Reyes, mas nascido em território norte americano, bem como Gerardo Mascareño ou Jesús Padilla. Uma polémica sem sentido.

2018 foi um ano especial para o Deportivo Guadalajara, clube mais popular do futebol mexicano e até há bem pouco tempo o mais titulado do país - entretanto superado pelo América. Um ano que culminou três anos de trabalho de alto nível por parte de Matías Almeyda com a conquista da Liga dos Campeões da CONCACAF por parte do Chivas de forma inédita. Desde 1962 que o clube de Guadalajara não se sagrava campeão de clubes a nível internacional, com a presença no Mundial de clubes de 2018 a ser como que o cumprir de um sonho. Desde abril, porém, muito mudou no clube e não só Matías Almeyda o deixou em litígio com a direção depois de devolver o clube aos títulos - durante vários anos até à chegada de Almeyda o Chivas esteve mesmo muito perto da descida de divisão -, acompanhando o técnico vários jogadores fundamentais das conquistas recentes do histórico de Guadalajara.

Do Chivas campeão mexicano de 2017 e, já em 2018, campeão norte e centro americano de clubes, pouco resta. Agora sob o comando técnico de José Saturnino Cardozo, antigo internacional paraguaio e figura histórica do Toluca, o Chivas perdeu nos últimos meses nomes importantes das conquistas recentes do clube e chega ao Mundial de Clubes em crise. Crise que se abateu no clube após o título no Clausura 2017 com as divergências entre a equipa técnica e jogadores com a direção com base em prémios de jogo e encurtamento de férias a resultarem numa crise de resultados que se prolongou durante o Apertura 2018 recentemente disputado.

Desde o título, alcançado no final da temporada 2016/17, que o Chivas não chega sequer aos play-off da Liga MX - jogaram-se três torneios desde então -, tendo ficado mesmo na penúltima posição neste primeiro torneio da temporada, uma constante desde então. Com vários títulos durante a passagem pelo clube, Almeyda foi o treinador mais bem sucedido do Chivas nos últimos 40 anos e além do técnico argentino saíram, nos últimos meses, do clube, nomes como Oswaldo Alanís, Rodolfo Cota (MVP da final da Champions da CONCACAF de Abril), Rodolfo Pizarro, todos fundamentais na conquista internacional do Chivas, mas também Gallito Vázquez, Néstor Calderón ou Carlos Fierro, nomes importantes no regresso aos títulos do histórico clube mexicano.

Na base da quebra competitiva do Chivas nos tempos mais recentes está ainda outro pormenor, no mínimo, bizarro. Tudo culpa do divórcio entre o dono da equipa, Jorge Vergara e Angélica Fuentes que tal como aconteceu no Mónaco, por exemplo, resultou na divisão do património de Vergara e consequente incapacidade financeira para continuar a investir fortemente no Chivas. A isto junta-se um escândalo financeiro de fuga aos impostos e tudo no mesmo saco num clube a passar por uma crise desportiva e financeira pouco tempo depois do melhor período em várias décadas para o emblema de Guadalajara. Uma crise que chega no pior momento possível e que devia ser histórico para o Chivas.

O Mundial de Clubes não será fácil para o Chivas e nem Cardozo parece ter ainda bem definida a ideia que pretende impor no clube de Guadalajara. Ao longo do Apertura 2018, o Chivas foi um verdadeiro camaleão tático, tendo surgido em campo em vários sistemas diferentes. Ora em 4-4-2 e diferentes variantes, ora em 5-4-1, ora em 4-3-3. Um clube assente na experiência da sua dupla de defesas centrais com o bom e o mau que daí advém (ainda por lá anda Carlos Salcido aos 38 anos e Jair Pereira leva já 32 primaveras), onde Alan Pulido tarda em confirmar o potencial que sempre lhe foi antevisto e onde, do mal o menos, se vão evidenciando Raúl Gudiño, Javier López e, acima de tudo, Orbelín Pineda, por estes dias, um dos melhores jogadores a atuar no futebol mexicano, um dos médios mais promissores do Mundo e, infelizmente para o Chivas, com um pé de fora do clube com o Mundial de Clubes a ser aceite universalmente como a última prova de Orbelín pelo Chivas.

O Chivas chega ao Dubai a cumprir um sonho, mas dificilmente será este ano que quebrará com a tradição: os clubes mexicanos até podem ser recordistas da prova, porém, nunca alcançaram até hoje uma final da competição. Para o fazer, o Chivas tem de regressar a um nível há muito perdido e pelo meio bater os japoneses do Kashima Antlers nos quartos de final, o Real Madrid na meia final e, muito possivelmente, o River Plate na final. Missão impossível? Eles dizem que não. Que se vão matar pelo clube e dar tudo pela mexicalidade. Afinal, com ovelha negra ou não, este ainda é o Rebanho Sagrado.