Grande Futebol
Hasenhüttl, o artista do futebol que se cansou de fazer história na Alemanha
2018-12-05 23:00:00
Depois de trabalhos surpreendentes na Alemanha, um dos técnicos europeus mais reputados chega agora à Premier League.

Depois de doze jornadas sem qualquer mexida nos comandos técnicos dos clubes da Premier League, a época do despedimento está oficialmente aberta. Depois da saída de Slavisa Jokanovic do comando técnico do Fulham e consequente substituição por Claudio Ranieri, eis que o Southampton, dois jogos depois, terminou a ligação entre o clube do sul de Inglaterra e Mark Hughes, substituindo o antigo internacional galês por Ralph Hasenhüttl, técnico austríaco de 51 anos, uma contratação surpreendente, afinal, não foi há muito tempo que Hansehüttl surgia entre os favoritos para assumir o comando técnico do Arsenal após a saída de Wenger, ou do Bayern após a saída de Juup Heynckes, sendo um dos principais favoritos a fazê-lo em caso de despedimento de Niko Kovac.

Hasenhüttl cansou-se de esperar e depois de fazer história na Bundesliga, em dose dupla, ruma agora à Premier League oferecendo à competição mais um técnico com um traço distintivo, aumentando a riqueza e a profundidade da competição no que a treinadores diz respeito. Um verdadeiro exemplo do poderio financeiro e atratividade desportiva e competitiva da Premier League, quando um clube que por esta altura se vai debatendo com uma séria luta pela manutenção na prova consegue contratar um dos mais reputados técnicos do futebol europeu. Preparem-se para ficar cansados a ver o Southampton. A máquina de pressão de Hasenhüttl está a chegar.

“Creio que, independentemente de onde tenha trabalhado, os estádios estiveram sempre cheios em resultado da forma como jogávamos. Era bem sucedido, atrativo e representava uma forma de estar na vida muito particular e isso tem muito a ver com nossa filosofica. Há um ditado que diz que ou dás às pessoas aquilo que elas querem ver, ou ninguém vai aos estádios. Eu concordo com ele a 100%”, diz. Uma filosofia assente num futebol rápido, veloz, incisivo e até visceral.

“O objetivo é recuperar a bola, mudar o centro de jogo e avançar no terreno em menos de dez segundos. Naturalmente, tudo isto depende de onde, no terreno, recuperas a bola. Há muitas outras possibilidades, mas marcámos muitos golos desta forma na nossa primeira época, com muita e intensa pressão em zonas adiantadas do terreno”, explica em entrevista ao site Football Paradise, algo que sem surpresa resultou em comparações com o estilo de Klopp - com quem estudou na altura de tirar os cursos de treinador -, até pela própria postura apaixonada com que vive os jogos. “Creio que somos adeptos de uma filosofia futebolística muito parecida. Ambos defendemos um estilo de futebol de alta intensidade, queremos os nossos jogadores em sprints constantes, a pressionar muito e bem, elementos que tornam o jogo mais vivo, dinâmico e entusiasmante para o público”, afirma o homem ao qual passaram a chamar “Klopp dos Alpes”.

Adepto de uma pressão feroz e de chegadas rápidas à baliza adversária, Hasenhüttl é mais um dos fiéis discípulos de Ralf Rangnick e do futebol “heavy metal” tão típico do atual futebol alemão e do qual Jürgen Klopp é o expoente máximo na atualidade. Se o Gegenpressing já tinha sido dado a conhecer ao futebol inglês, conhecido pela “intensidade” e ritmo desenfreado nos seus encontros, por Klopp e, depois, por David Wagner em Huddersfield, mas também por Daniel Farke no Championship ao comando do Norwich, o sul de Inglaterra ganha agora o seu ícone com a chegada (surpreendente) de Hasenhüttl a Southampton. E, a verdade, é que o sucesso conseguido pelos nomes anteriores em Inglaterra provam que a aposta dificilmente podia fazer mais sentido.

Com as presenças de nomes como Guardiola, Klopp, Sarri, Howe, Dyche, Mourinho, Emery ou Pochettino, a chegada de Hasenhütl aumenta ainda mais o contingente de treinadores cuja identidade futebolística é altamente vincada. Poucas competições no Mundo oferecem tantas filosofias tão próprias como a atual Premier League, que é hoje, depois de alguns anos de atraso para ligas como a Espanhola ou a Italiana, um verdadeiro viveiro de riqueza e identidade tática. Uma riqueza tática que permitiu a Hasenhüttl, ao longo das últimas temporadas, fazer história a dobrar no futebol alemão e razão pela qual o técnico de 51 anos tem de ser visto como um dos mais credenciados a nível continental.

Depois de uma carreira relativamente bem sucedida enquanto jogador ao longo de quase vinte anos, quer no futebol austríaco, mas também na Bélgica e na Alemanha, o antigo “panzer” de 1’91m, internacional pela Áustria em oito ocasiões, foi no SpVgg Unterhaching que Hasenhüttl iniciou a carreira como treinador, liderando o clube a duas posições no Top-6 da terceira divisão alemã em 2008 e 2009. Foi em Aalen, porém, que a “lenda” Hasenhüttl se começou a desenvolver e onde se iniciou a fama de conseguir fazer muito, com pouco. Pegando no Aalen a apenas um ponto da zona de despromoção no início da segunda metade da temporada 2010/11, Hasenhüttl guiou o Aalen à manutenção nos primeiros meses de trabalho e uma verdadeira revolução nos que se seguiram.

Hasenhüttl reconstruiu o Aalen para a temporada 2011/12 e não desiludiu. Com o objetivo de estabilizar o clube a meio da tabela na terceira divisão alemã, foi com o Aalen instalado na sexta posição da competição que se deu início à segunda metade da temporada. Ajudados por uma série de oito jogos sempre a vencer, o Aalen garantiu a promoção à segunda liga alemã como segundo classificado contra todas as expetativas. Num patamar acima, o Aalen voltou a surpreender, numa temporada que até começou com enorme contrariedade depois de Hasenhüttl ter contraído um vírus que só o possibilitou de regressar aos bancos de suplentes já com três semanas de temporada decorridas.

Certo, é que em 2012/13, temporada de estreia do Aalen na 2.Bundesliga, a equipa recém promovida surpreendeu. Por altura da paragem de inverno e de início da segunda metade da época, o Aalen era quinto classificado, acabando por terminar a temporada na nona posição mas com o melhor registo das equipas promovidas essa temporada ao segundo escalão do futebol germânico. O traço de Hasenhüttl começou ali a destacar-se, escalando a equipa num 4-5-1 de futebol de contra ataque feroz e pressão intensa na fase de recuperação da posse de bola. Divergências com a direção, tal qual voltaria a acontecer anos mais tarde, acabaram por interromper a ligação de Hasenhüttl com o Aalen, numa altura em que a direção decidiu instituir uma política de contenção de custos no clube e que levaram a uma saída quase massificada do plantel.

Hasenhüttl não precisou de muito tempo para arranjar novo trabalho, naquele que é, ainda hoje, o seu maior legado e a obra prima futebolística desde que iniciou a sua carreira enquanto treinador. Em Outubro de 2013 assumiu o comando técnico do Ingolstadt 04 e fez história, numa das histórias mais incríveis de ascensão meteórica nos últimos anos de futebol alemão. Hasenhüttl pegou no Ingolstadt em zona de despromoção na segunda liga alemã e em poucos meses liderou-o a um tranquilo décimo lugar no final da temporada. Na segunda, porém, o registo do pequeno clube alemão foi histórico. Em 2014/15, Hasenhüttl liderou o Ingolstadt pela primeira vez na história do clube à primeira divisão alemã e logo como campeão.

O sucesso de Hasenhüttl por Ingolstadt não ficou por ali. Na estreia na Bundesliga não só o Ingolstadt assegurou a permanência, como o fez com algum fulgor, com Hasenhüttl a liderar o clube a um tranquilo décimo primeiro lugar na competição em 2015/16. Era tempo de outros voos e ao contrário de Ícaro, Hasenhüttl não se deixou queimar pelo Sol. Depois de não renovar contrato com o Ingolstadt para uma terceira temporada completa ao serviço do clube, foi Hasenhüttl que teve a honra de apadrinhar a estreia do RB Leipzig na primeira divisão alemã. Em épocas consecutivas, Hasenhüttl liderou equipas em estreia naquele patamar, e em ambos os momentos fez história.

A carreira de Hasenhüttl por Leipzig nem começou da melhor maneira, mas acabou com mais um momento único no futebol alemão. Apesar de ter perdido na estreia e acabado eliminado pelo Dynamo Dresden da Taça da Alemanha, Hasenhüttl encantou a Alemanha com um futebol altamente intenso que possibilitou ao Leipzig terminar a Bundesliga 2016/17 como vice campeão alemão, naquela que foi a primeira temporada do clube na primeira divisão alemã e que possibilitou ao Leipzig uma presença, também ela inédita, na Liga dos Campeões. Um percurso que transformou Hsenhüttl num dos técnicos mais requisitados do futebol alemão, passando o técnico austríaco a ser ligado a clubes como Arsenal, o Bayern Munique ou o Borussia Dortmund, principalmente quando no final da temporada 2017/18 ficou certo que Hasenhüttl não iria renovar o contrato com o Leipzig depois de uma época “dececionante” face às expetativas que havia deixado altas na temporada anterior. Em 2017/18, afinal, o Leipzig foi “apenas” sexto classificado, acabando por sair em rota de colisão com a direção do clube e sem chegar a um entendimento para uma renovação de contrato.

“Foi uma penas que tenhamos falhado a qualificação para a Champions por apenas dois pontos, mas após duas temporadas senti que tinha espremido tudo o que podia desta equipa e ainda que tivesse mais um ano de contrato falei com Rangnick e disse-lhe que a equipa precisava de outro estimulo. Tínhamos duas hipóteses: ou se mudava o treinador, com ideias novas, ou o plantel. Mas esta era uma equipa muito boa e muito jovem, portanto, isto não era possível. No final, foram dois anos bem sucedidos e acabei por fazer uma pequena pausa em busca de novas oportunidades”, confessou Hasenhüttl.

O prazer e interesse de Hasenhüttl por um futebol estimulante, de autor e quase artístico está intimamente ligado à própria experiência de vida do técnico austríaco. Filho de um pintor de renome, e de uma apaixonada pela música e pela moda, o amor pelas artes e pela cultura foi herdado ao ponto de, ainda hoje, sempre que possível, Hasenhüttl se sentar ao piano para o tocar, tal qual fazia a sua mãe. “O meu talento para o futebol não era o melhor, mas era muito trabalhador”, afirma, o que também explica, certamente, a forma de jogar das suas equipas.

Hasenhüttl chega agora à Premier League e, quem sabe, para voltar a fazer história. Um homem que sempre demonstrou uma grande capacidade de adaptação às competições e contextos em que se inseriu, considerando a passagem por ligas e equipas de menor dimensão essenciais no seu crescimento enquanto treinador. “Eu tenho uma ideia interessante de como deve ser jogado o futebol, acredito, e considero ser um bom motivador. Contudo, a minha principal característica é ter uma mente aberta e demonstrar empatia. Procuro sempre uma boa e chegada relação com qualquer pessoa no clube. Jogadores, técnicos, staff... Isso é importante para mim. O lado humano. Fico sempre em terrenos positivos com antigos jogadores e clubes, não só devido aos bons resultados que conseguimos”. A Premier League ganhou, assim, mais um craque.