Durante quase três décadas fingiu ser jogador de futebol. Minutos em campo e golos? Nem vê-los.
Botafogo, Flamengo, Puebla, Ajaccio, Fluminense, Vasco da Gama, Independiente… entre outros. À primeira vista este não parece ser um currículo particularmente modesto no que à vida de um futebolista sul americano diz respeito. Para um brasileiro, ainda para mais, juntar o Independiente, um dos gigantes da América do Sul, a alguns dos maiores clubes brasileiros, ainda para mais, os quatro grandes do Rio de Janeiro, é mesmo um currículo a roçar o invejável. Este é o currículo de Carlos Henrique Raposo. O currículo de Carlos Kaiser, o maior aldrabão da história do futebol brasileiro e, quem sabe, do futebol internacional.
Hoje budista e Personal Trainer, há muito que a vida de Carlos Kaiser dava um filme. Terá sido isso que pensou Louis Myles, realizador britânico que estreará nos próximos meses o documentário Kaiser: o melhor futebolista que nunca jogou futebol. 2018 será o ano em que a história da vida e da carreira fabricada de Carlos Kaiser será finalmente do domínio público com a edição de um livro escrito pelo jornalista Rob Smyth. A história de um homem que durante 26 anos enganou alguns dos maiores clubes do Mundo, que encheu um estádio em França para a sua apresentação oficial e que, por pouco, não representou também o Louletano.
Tempos houve em que Carlos Henrique Raposo era, efetivamente, um futebolista talentoso. Tanto, que em criança passou pelas camadas jovens de clubes como o Flamengo ou o Botafogo e ganhou a alcunha Kaiser devido às (teóricas) semelhanças que compartilhava com Franz Beckenbauer. No futebol sénior, porém, a história foi bem diferente e foi fora dos relvados que Carlos Kaiser a construiu. Uma carreira de farsa. Tudo em nome da família. “Quero que percebam os motivos que me levaram a mentir. A pobreza da minha família atirou-me para um poço sem fundo, sem eu ter opção. Habituei-me a representar porque não me deixaram ser o que eu queria”, explicou ao Mais Futebol há alguns anos.
Durante anos, Carlos Kaiser enganou os maiores clubes da América do Sul. Numa época em que não existiam registos vídeo e a medicina estava longe da atual, não foi difícil para Carlos Kaiser construir a carreira que construiu. Com amigos na imprensa que lhe construiram uma imagem pública e a invenção de lesões impossíveis de descriminar de forma a passar sempre a carreira na enfermaria, Carlos Kaiser saltou de clube em clube sem nunca acabar por ser descoberto. Até um telemóvel de plástico Kaiser tinha de forma a parecer mais profissional, bem como um amigo dentista que, quando era preciso, lhe passava um atestado médico. Infeções dentárias? Foram às centenas.
Carlos Kaiser queria ser futebolista, mas não queria nem conseguia jogar futebol. Durante anos estudou os maneirismos dos melhores jogadores do Mundo, trabalhou no físico em ginásios e construiu uma personagem praticamente inabalável. A confiança com que Carlos Kaiser andava na rua enganava qualquer pessoa. A amizade que construiu com jogadores como Carlos Alberto Torres ou Renato Gaúcho facilmente o faziam ser confundido com qualquer outro futebolista. Fora de campo, Kaiser pensou em tudo. A rede de conhecimentos construída permitia-lhe obter recomendações positivas sempre que chegava a altura de mudar de clube.
A amizade construída com jornalistas fizeram surgir na imprensa notícias e dossiers falsos acerca dos feitos de Kaiser e que permitiram ao brasileiro fazer crescer o mito. Como quando passou pelo México e certa publicação deu conta de um período tão glorioso que até a federação mexicana convidou Kaiser a jogar pela seleção tricolor. Meses mais tarde acabou dispensado pelo Puebla sem nunca jogar qualquer jogo pelos mexicanos, mas mesmo assim garantindo trabalho no Botafogo onde a carreira de aldrabão verdadeiramente começou, fingindo lesões e usando telemóveis de brincar de forma a construir uma personagem profissional, ocupada e disputada.
Um dia, Kaiser chegou mesmo à Europa para jogar pelo Ajaccio. O estádio encheu para a apresentação de Carlos Kaiser e o clube até tinha agendado uma sessão de treino de 15 minutos para que Kaiser mostrasse ao Mundo os seus atributos. Enviou bolas para a bancada, beijou o emblema e conseguiu não ser descoberto. Durante meses manteve-se por França passando praticamente todo o tempo na enfermaria inventando desculpas que não tinham como ser desmentidas. Na imprensa brasileira faziam o seu trabalho. Kaiser brilhava e era o melhor marcador do clube francês onde jogou durante… oito temporadas. Tudo isto, depois de inventar no currículo uma passagem pela Argentina onde diz ter vencido a Libertadores e a Intercontinental aproveitando o facto de, na mesma altura, até ter existindo um Carlos Enrique no emblema de Avellaneda.
“Era brasileiro e brasileiro tem muita fama por lá. O estádio era pequeno, mas estava bem cheio. Pensei que iria só acenar e tal, mas vi um monte de bolas no campo e percebi que teria um treino. Fiquei nervoso porque logo no primeiro dia eles iriam ver que eu não jogava nada. Comecei a pegar todas as bolas rapidamente e chutá-las para o público. Os adeptos foram à loucura. Não sobrou uma bola em campo. Ao mesmo tempo beijava a camisola do clube. Conquistei o carinho dos adeptos e acabou só acontecendo um treino físico”, confessou.
No regresso ao Brasil depois da passagem por França, mais uma história deliciosa. Depois de assinar pelo Bangu e depois de semanas a inventar lesões, o presidente do clube obrigou o treinador a colocar Kaiser em campo. Enquanto aquecia, aproveitou o descontentamento dos adeptos do Bangu para entrar em vias de facto com os mesmos e ser expulso do jogo sem ter de se expor. Inventou que tinha sido insultado e até garantiu uma extensão de contrato de seis meses. “Sentei-me no balneário, o doutor Castor entrou e quando ele chegou perto de mim disse-lhe: ‘Antes que o senhor diga qualquer coisa, Deus deu-me um pai e o levou. E Ele me deu outro. Então jamais vou admitir que digam que o meu pai é ladrão e os adeptos estavam atrás de mim gritando isso.’ Ele segurou-me pela nuca, beijou-me e convidou-me para viajar. E renovou comigo por mais seis meses”, explicou Kaiser ao Globo Esporte.
Até na rua Carlos Kaiser era um artista. Aproveitando a semelhança e a amizade que tinha com Renato Gaúcho, houve um dia que roubou a identidade ao amigo e surgiu numa festa organizada em honra de Renato fazendo o verdadeiro Renato Gaucho ser barrado à entrada. Afinal, já lá estava dentro. Supostamente. E há também a vez em que se colou a uma receção camarária a Romário e aproveitou a fotografia para se fazer passar por grande amigo de Romário e, por consequência, para ajudar à personagem fictícia de futebolista. Esta, particularmente bem sucedida junto do público feminino.
Três anos depois, Carlos Kaiser é uma das personagens mais enigmáticas do futebol e, porventura, o maior aldrabão de sempre da história do jogo. “A vida é marketing. Eu tinha a aparência de uma estrela do futebol. Sabia como falar e como vender a minha imagem. Quem me via pensava: o tipo jogou em França, esteve no Flamengo, no Fluminense, é amigo do Bebeto e do Carlos Alberto. Este tipo é o ‘real deal’. É como o Messi e o Beckham. O Messi é o melhor jogador, mas aquele que vende é o Beckham. O Messi não vende. Não tem a maneira certa de falar. Eu tinha. Apareci em vários programas no Brasil e hoje atraio a atenção a nível global. Não teve nada a ver com a minha qualidade enquanto jogador ou amante. É tudo culpa do meu carisma”.