Passagens pelo Liverpool e Inglaterra retiraram-lhe crédito, mas a herança deixada por Roy Hodgson no futebol é rica.
Quando Roy Hodgson foi apresentado por Steve Parish como novo treinador do Crystal Palace depois de um início desolador de época sobre o comando técnico de Frank de Boer, poucos foram os que acreditaram estar no antigo selecionador inglês a chave para o sucesso futuro do emblema do sul de Londres. De imagem fatigada pela passagem pela seleção inglesa, que terminou com o debacle frente à Islândia no Europeu de 2016, nem mesmo os adeptos do Palace acreditavam que Roy Hodgson pudesse ser o homem certo para evitar uma inesperada queda do clube londrino à segunda divisão inglesa. Hoje, talvez sejam muitos mais aqueles que mudaram de opinião que aqueles que ainda a mantêm. Rei do Gelo e do Sul de Londres, esta é a história da redenção de Roy Hodgson.
Foi com o Crystal Palace afundado na tabela classificativa da Premier League, ao fim de apenas quatro jogos disputados, que Roy Hodgson pegou na equipa. Qual filho pródigo que retorna a casa. Afinal, foi ali perto, em Croydon, que nasceu e naquele mesmo piso, Selhurst Park, onde se fez jogador. Para o Palace os alarmes soaram cedo e intensamente. Apenas quatro jogos volvidos, entendeu quem no clube manda não ser precipitado prescindir dos serviços de Frank de Boer tão cedo. Hodgson levou para Selhurst Park uma experiência que o holandês não tinha, porém, foram precisos três jogos para que a magia de Hodgson se fizesse notar. Ao oitavo jogo da temporada, ainda sem qualquer golo marcado na Premier League, Hodgson liderou o Palace a uma retumbante vitória caseira, por 2-1, perante o Chelsea.
O sol, pelo Sul de Londres, foi de pouca dura, porém, a revolução de Hodgson não tardou a surgir. Catorze jornadas depois de tomar conta do clube de infância, Roy Hodgson não só o retirou do fundo do tabela classificativa, como tirou mesmo o Palace da zona de despromoção pela primeira vez desde agosto. Para não mais voltar, liderando mesmo os Eagles a uma série de oito jogos invictos na Premier League entre 18 de novembro e 23 de dezembro. Só o Arsenal acabou por conseguir interromper a impressionante série do emblema do sul de Londres, algo que nem Guardiola e o seu Manchester City conseguiram ontem ao sairem de Selhurst Park empatados a zero. Hodgson tornou-se Rei do Sul de Londres, porém, muito antes disso, era já o Rei do Gelo.
Roy Hodgson não é estranho à ideia de recuperar clubes de fundo da tabela e, mais do que isso, revolucionar o futebol por onde passa mesmo que a imagem passada por Inglaterra no recente campeonato europeu seja a de um treinador datado. Em Itália, por exemplo, foi em conjunto com Arrigo Sacchi o grande impulsionador das defesas a quatro – fazendo cair o líbero -, da marcação zonal e da utilização da armadilha do fora de jogo. Ideias de um futebol pouco habitual para os lados nerazzurri de Milão e que o próprio Hodgson chegou a temer não conseguir implementar. Afinal, nomes como Bergomi, haviam feito a carreira, haviam construido a sua reputação, devido aos sistemas de jogo clássicos do futebol italiano. Hodgson, primeiro treinador da era Massimo Moratti, acabou recuperando um Inter decadente retornando-o ao topo da tabela classificativa em Itália e a finais europeias. A derrota aos pés do Schalke 04 e o desentendimento com Roberto Carlos, porém, acabariam por eclipsar a importância de Hodgson quer para o Inter, quer para a própria Serie A.
Hodgson, como tantos outros, perdeu crédito com a passagem pelo comando técnico de Inglaterra, porém, poucos treinadores britânicos foram tão influentes no Mundo do futebol nas últimas décadas. Um treinador que ajudou a mudar a face do futebol nórdico e que fez história na Suíça ao qualificar a federação helvética para o primeiro Mundial em décadas (1994, no qual chegou mesmo aos oitavos de final) e à primeira presença suíça num europeu de futebol (1996). Mais tarde, já em 2006/07, liderou a Finlândia ao melhor período da história da federação nórdica deixando o país à beira de uma qualificação inédita para uma grande prova de seleções. Um feito que, em 2012, lhe valeu a condecoração de cavaleiro da ordem do leão finlandês pelos serviços prestados à nação e ao futebol.
A sucesso de Hodgson pelo futebol nórdico vai muito além da evolução que possibilitou à seleção finlandesa na década passada. Na verdade, é preciso recuar várias décadas, até aos anos 70 e 80, para se perceber a verdadeira dimensão da importância de Roy Hodgson para o futebol nórdico, em particular, para o futebol sueco. Em conjunto com Bob Houghton, English Roy e English Bob mudaram para sempre a forma de jogar das equipas suecas que, até então, eram ignorantes às ideias de bloco, linha defensiva, marcação zonal, pressão coletiva, pressão alta, laterais ofensivos… a todo e qualquer conceito que tivesse tornado o futebol um desporto tático e moderno. Roy Hodgson e Bob Houghton introduziram-nos, lideraram o Malmö a títulos sucessivos nos anos 80 (algo nunca alcançado por qualquer treinador até então), já depois de Hodgson ter vencido dois títulos suecos, ainda nos anos 70, ao serviço do Halmstad, um feito que Hodgson recorda ainda hoje como o mais importante da carreira, mesmo que anos mais tarde até tivesse alcançado finais europeias com Fulham e Inter de Mião.
Hodgson considerou mesmo a passagem pelo Halmstad como um trabalho de transformar água em vinho, ao levar uma equipa ao título nacional meses depois da mesma apenas se ter mantido na primeira divisão sueca na última jornada da competição. Já em 2001, venceu também o campeonato dinamarquês ao serviço do FC Copenhaga. Hoje, Hodgson é considerado na Suécia uma lenda do futebol e o homem mais importante para o feito alcançado pela Suécia no Mundial 1994. Em Copenhaga, admitiu Carsten Jensen ao Independent, antigo diretor desportivo do clube, Hodgson lançou as bases que permitiram ao emblema da capital dinamarquesa chegar a mais sete títulos nacionais e ter-se estabelecido como presença regular na Liga dos Campeões.
Ontem, frente ao Manchester City, o Palace interrompeu a série vitoriosa de Guardiola e impediu que o emblema inglês estabelecesse um novo recorde de vitórias consecutivas nas grandes ligas europeias. O Palace foi somente a segunda equipa da Premier League, esta temporada, a sair de um embate perante o City sem ser derrotado. Mais que isso, reduzindo o City ao nulo. Hodgson impediu que o City fizesse história e fê-lo com personalidade. Nenhuma equipa da Premier League este ano endereçou tantos remates e conquistou tantos cantos quanto o Palace ontem, que em Milivojevic e Benteke ficou realmente perto de, tal como fizera perante o Chelsea, surpreender o City derrotando-o. Chave para a quase vitória do Palace foi a troca de Townsend e Zaha nos últimos momentos da partida, algo que permitiu ao marfinense ganhar a grande penalidade que Milivojevic desperdiçou. No final da partida, Hodgson recusou os louros. “Foi uma alteração tática que até a minha mulher teria feito”, disse. Certo, é que tal como também referiu o Cavaleiro do Gelo, Rei do Sul de Londres, o Palace “foi excelente em termos de disciplina tática, comprometimento, foco e concentração”. Tudo o que sempre pautou a carreira de Rou Hodgson. Já podemos falar em redenção?