Charles Dickens, o conceituado romancista inglês, morreu em 1870 mas deixou eternas obras como 'David Copperfield', onde se relatam desafios e metas que se colocam sempre à frente de alguém desde o nascimento até à idade adulta. O 'plot' romântico diz-nos que é preciso estar preparado e saber lidar com os "impulsos enganadores". E porque no futebol, por vezes, há caminhos pedregosos e elitistas, é preciso "saber ouvir" os mais velhos e há quem embrulhe a crença e a confiança do triunfo numa seriedade e compromisso no trabalho. Mica, 32 anos, é um desses casos.
O médio tem sido uma das figuras do Campeonato de Portugal há vários anos e conversou com o Jogo do Povo, no Bancada, sobre as dificuldades e problemas que a carreira de jogador vai colocando. Ao mesmo tempo, não faltaram também conselhos de alguém que "faz pela vida" dentro e fora dos relvados com uma identidade própria e um genuíno sorriso para enfrentar os desafios.
"Não é chegar ali de cadeira. Quem pensar assim está muito enganado"
A paixão de Mica pela bola começou em criança e quando a mãe o inscreveu nas escolinhas do Paredes estava longe de imaginar os desafios que o futebol lhe iria colocar. Ainda à espera de feitos mais altos porque "o sonho comanda a vida", Mica ainda sonha chegar "à II Liga, no mínimo". "Nunca se sabe", conta o médio, entre sorrisos, explicando que é preciso percorrer muita 'estrada' para vencer no futebol, até porque os patamares inferiores não são sinónimo de sossego para ninguém.
"Já estive na Divisão de Elite do Porto muitos anos e posso dizer-lhe que é uma divisão complicadíssima para subir, por exemplo. Este ano houve equipas muito fortes como o Marco ou o Aliados de Lordelo que, com a mesma equipa, se calhar, no Campeonato de Portugal davam luta", preconizou o experiente médio que alinhou nas últimas épocas ao serviço do Vila Meã, uma equipa do concelho de Amarante, que equipa à 'AC Milan'.
Na última Série A do Campeonato de Portugal, Mica foi um dos mais talentosos médios. A experiência foi uma ajuda para alguém que tem caminho feito no futebol por estas divisões mais baixas onde a competividade obriga a dar "sempre o máximo em cada treino e jogo".
"Temos equipas do Campeonato de Portugal que na Liga 3 também faziam boa figura e na Liga 2. São divisões muito competitivas, com treinos organizados, com qualidade", descreveu-nos o médio que tem feito carreira entre a Invicta, Matosinhos e a zona de Amarante, tendo passagens por Felgueiras.
"Uns que querem mesmo ajudar e outros querem ganhar dinheiro à força toda"
E porque o caminho tem sido variado, Mica explicou ao Bancada que aos 32 anos já dá para ter noção de que o futebol coloca desafios que não são ultrapassados com 'duas de letra', como diz o povo do alto da sua sabedoria.
"Há miúdos que pensam que chegam ali para se afirmar mas é preciso trabalhar muito, ser humilde e perceber que há gente com muitos anos de futebol, se calhar gente que já esteve na I Liga e são campeonatos muito competitivos", relatou Mica, deixando outros avisos para quem quer fazer disto vida.
"É preciso ser muito agressivo no bom sentido. Não é chegar ali de cadeira. Quem pensar assim está muito enganado", reconhece o centrocampista que, há muitos anos, levou uma lufada de realidade quando passou da formação para o futebol senior.
"Não diria que durante a formação somos enganados mas são realidades diferentes. É um impacto! É muita diferença. Um miúdo de 18 anos chega a um patamar com malta de 30 anos, 28, alguns que jogaram na I Liga ou na Liga 2. É muito complicado", admite Mica, certo de que há bom remédio para lutar contra as adversidades.
"Não se pode desistir", mentaliza o jogador português, confiando que esse é também o papel dos atletas mais experientes no contexto atual.
"É importante mostrar isso aos miúdos. Hoje já há muitos empresários. E há vários tipos de empresários, uns que querem mesmo ajudar e outros querem ganhar dinheiro à força toda. E um bom empresário deve ser realista com o jogador e deve ter paciência".
Os ensinamentos do professor Mica
Tal como 'David Copperfield' de Charles Dickens, Mica aceita humildemente a realidade e procura conviver com ela, certo de que cometeu erros no passado mas deseja que outros não o façam. Porque um jogador "pode enganar um ano ou dois mas ao fim de quatro anos vai ser uma queda grande".
"Tenho muitos exemplos desses à minha volta de malta que, se calhar, esteve na Liga 2 e agora nem no Campeonato de Portugal jogam porque o crescimento não foi sustentando."
Aí, a realidade apresenta-se como uma frente que alguns têm dificuldade em enfrentar. "É complicado para essa malta que esteve lá em cima e agora nem no Campeonato de Portugal joga", contou Mica, falando igualmente de um Campeonato de Portugal pautado por "dificuldades" competitivas.
"O Campeonato de Portugal já é semi-profissional e conciliar com o trabalho não é fácil, por vezes", explicou Mica, realçando que se fazem muitas coisas na base da "paixão pelo futebol".
"As condições financeiras não são ideais para quem quer viver só do futebol e temos que ter um trabalho à parte, para conseguir ganhar mais algum dinheiro", detalhou este professor de Educação Física.
E porventura pela formação académica, Mica admite que olha com especial atenção para os miúdos que chegam ao futebol carregados de sonhos.
"Eu estou numa idade diferente mas os miúdos com 20, 23 ou 25 anos sentem dificuldades no sentido da competitividade porque isto são divisões muito competitivas e, por vezes, colocam-se objetivos muito grandes e jogar nestas divisões não é assim tão fácil porque já se encontra muita qualidade", insistiu Mica.
O jogador olha para trás e reconhece que, no tempo em que chegou ao futebol senior, gostaria de ter tido outro acompanhamento como há agora. E com sinceridade detalha o que ficou por fazer há vários anos.
"Devia descansar mais, cuidar mais do corpo, fazer reforço muscular, ter uma melhor alimentação, melhores hábitos", admitiu, sublinhando mesmo que é preciso tomar "decisões acertadas".
"Os meus pais mudaram de casa para me acompanhar no futebol"
Ora, nesse capítulo, assume que deixar Amarante foi um erro. "Em 2013, quando estive no Campeonato de Portugal, saí para uma divisão inferior e, se calhar, foi um passo imaturo", respondeu Mica, em declarações ao Jogo do Povo, no Bancada, esperando funcionar como um exemplo para "os mais jovens" sobre aquilo que se deve fazer e não se deve fazer para ter uma carreira constante no mundo da bola.
"Dizer-lhes o que podem e o que não devem fazer", preconizou Mica, certo de que "ganhar muito dinheiro a fazer o que se gosta" é o sonho de qualquer criança que sonha jogar futebol.
Aos 32 anos, este fã de padel, de pisar areias de novas praias e caminhadas pelo Gerês, confessa que "a idade é só um número, às vezes, e por isso siga para a frente".
"Treinava no clube ao fim do dia e às 6 da manhã já estava a pé para ir trabalhar"
Para frente é que é caminho mas Mica não esquece o passado e as dificuldades que não mais se esquecem. Dele e da família. "Quando era miúdo o meu pai tinha que me levar aos treinos. Quando fui para o FC Porto já tinha transporte. Mas quando fui para o Leixões os meus pais mudaram de casa para ir comigo em Matosinhos onde estive de juvenis a juniores durante quatro anos. São os esforços que os pais fazem pelos filhos e pelos sonhos dos filhos", revelou Mica, em jeito de agradecimento a quem o trouxe ao mundo e o tem acompanhado pelos caminhos do destino.
"Vim para Vila Meã, uma zona de conforto, fui a Felgueiras, Amarante e depois mantive-se aqui por perto. Se calhar, já deveria ter saído há mais tempo da zona de conforto mas pronto", reconheceu Mica que alia o futebol ao ginásio onde trabalha há seis anos para levar mais algum dinheiro ao final do mês para casa.
"No ginásio tenho facilidade em gerir horários e vou conciliando com o futebol. Vou dando umas aulas de grupo, dando os meus treinos particulares e pronto", contou, relatando que na época passada ao serviço do Vila Meã ia treinar "ao fim da tarde e no outro dia às 6 horas da manhã estava a pé para ir trabalhar", confessou Mica.
"Dizem-me todos os dias que sou um 'burro' do caraças por nunca ter sido ambicioso"
O futebol e a vida fazem-se de estratégias, desafios, metas, derrotas, empates e vitórias. Na vida como no futebol de Mica só não há espaço para desistir. "Vai-se andando assim", promete o centrocampista que tem 'levado na cabeça' de "muita gente"
"Dizem-me todos os dias que sou um 'burro' do caraças por nunca ter sido ambicioso. Se calhar até sou mais ambicioso agora", explicou Mica, carregado de motivação para continuar a escrever bonitas páginas no futebol, até porque a 'claque' estará lá sempre, seja qual for o patamar.
"A nossa família apoia sempre seja na Distrital ou na Liga dos Campeões, isso é inquestionável", palavra deste jogador que se revê na maneira de jogar de Otávio.
"Sou muito tranquilo no balneário mas a jogar sou muito chato, muito chato. Por norma, ninguém gosta de jogar contra mim. Sou um jogador agressivo, ranhoso no bom sentido como o Otávio. Sou competitivo mas não sou mal educado. No balneário gosto de tranquilidade", explicou Mica, ele que foi capitão "muitos anos no Vila Meã" mas sempre foi mais de mostrar do que falar.
"Nunca fui um capitão de dar muitas duras. Prefiro dar exemplo pela prática do que pelas palestras", disse o médio, que não conteve o sorriso na entrevista ao usar uma célebre expressão de Otávio.
"Chora bebé, exatamente", disse entre sorrisos, insistindo que é muito "competitivo". E assim será até ao final da carreira quando bater à porta a 'ternura dos quarenta'.
"Sinto-me orgulhoso por aquilo que o futebol me tem dado. Sou feliz naquilo que faço, estudei e ainda quero jogar até aos 40. São objetivos".